O chute na santa
Há dois mil anos aquele que é mestre de tantos de nós nos deu uma direção que não sabemos seguir
* Leia no site dO Globo ou abaixo (05/11/2016)
O pastor chutou a santa. (Chamam de pastor. Talvez nem seja um mau nome, visto o modo como os membros dessas ‘‘igrejas’’ tangem gente como se fosse gado.) Achou que estava sendo um bravo, um denunciador da idolatria. Adorar imagens... O pastor chutou a imagem, pensando que chutava a santa. Seu pé é que foi idólatra. E sua ira. Ele acreditava que a santa estava na imagem. Não estava. A santa não sentiu o chute. Não estava lá. Não estava nem aí. Houve protestos, claro. Não porque ele chutou a santa. Seu pé não tinha esse poder. Mas pelo ódio que mostrou nos olhos que miraram a imagem e guiaram o pé. E pelo sorriso babado de triunfo. O pastor não tinha nenhuma santidade. Era tolo e presunçoso. A imagem da santa também não era santa. Mas nela se representava uma santidade verdadeira. O pastou errou o pé, mas sua intenção foi certeiramente iconoclasta. Apenas, ele não tinha poder para atingir a santidade. Ficou só um ridículo raivoso.
O problema é que o ridículo se fez carne e vai habitar entre nós por uns quatro anos. É outro o ‘‘pastor’’. Mas é o mesmo o espírito de trevas. E aí passa de ridículo a alarmante. Atinge na boca do estômago essa cidade que tinha o hábito da alegria, e agora parece dividida em fatias opostas de ódio e esperança. A esperança perdeu as eleições. Mas ganhou a rua. Tomou a praça. Nunca desaprendeu de cantar. A esperança habita o coração. Tem luz, como o plexo solar que a abriga. O ódio mora no fígado. É uma cirrose da vida. Embriaga-se de poder, mas bebe mal. O ódio é bêbado. Fica errante e desencontrado. Atira em todas as direções, porque não tem meta. O ódio é míope e vesgo. Não vê de longe, não sabe nada da História. E é torto de visão. É esse aturdido que por um tempo vai ficar entre nós.
E fazemos o quê? Há dois mil anos aquele que é mestre de tantos de nós nos deu uma direção que não sabemos seguir. Difícil demais. Excessivamente acima das nossas possibilidades humanas. Ainda mais quando se trata de política, essa arte do bem comum que agora anda se exercendo como técnica do bem próprio. E dane-se o comum. Mas lá atrás foi dito: amem os seus inimigos; porque fácil é amar os amigos. Nem sempre é fácil amar mesmo os amigos... Os inimigos... não somos esses santos. Mesmo na esperança, que tem natureza amorosa, ferve uma raiva de brasa que até a brisa de Deus, que é tão levinha, pode atiçar. Mas pelo menos podemos — podemos? — aprender a mansidão com os nossos próprios corações. Não deixar que eles naufraguem num ódio que não fomos nós que pusemos na praça. Nós pusemos a festa. Melaram a festa. Mas continuamos na praça.
Temos os nossos motivos para não ir para casa vencidos e cabisbaixos, cheios de autopiedade. Descemos para a rua não apenas porque o calendário nos dava uma eleição. Descemos porque somos empurrados por um sonho que não está no calendário. Acreditamos que um dia o lobo se deitará com o cordeiro, e haverá paz. E justiça, que é o nome novo do amor. — Já sei, já sei. Vão me dizer que não é assim a natureza humana. Que os lobos comem os cordeiros desde que o mundo é mundo. — Mas essa contestação, tão pobrezinha, pode ter força para nos impedir de sonhar? O sonho se tornou impossível porque, de repente, pelo mundo todo, o ‘‘princípio de realidade’’ resolveu assumir o comando da vida? Digo que não. Sonhar é incontrolável. E belo. O ‘‘princípio de realidade’’ é frequentemente cinza e feio. E não tem generosidade. Faz-se passar por inteligente porque toma as coisas ‘‘como elas são’’ e age ‘‘com objetividade’’. E aí é que se engana. As coisas são o que são agora, o que foram antes (e se transformou), e o que podem ser, e ainda está na barriga grávida do futuro. Os cultores do ‘‘princípio de realidade’’ não conhecem a História e não aprenderam a sonhar. Os amorosos da esperança têm o passado e o futuro nas mãos. Sabem que o mundo muda sem cessar, e que a todo momento o futuro acontece. Os do ‘‘princípio de realidade’’ são gelados. Os esperançosos estão cheios de sol. Vivemos no calor, em plena luz.
Sim, pode ser que nunca o lobo venha a se deitar com o cordeiro. Mas esse é o nosso sonho, e a insistência nele vai mudando o mundo. Muito devagar, às vezes. Mesmo assim, isso, a boa mudança, é o que para nós é sagrado. Essa é a nossa coisa santa. Se o pastor vier chutar a sua imagem — nossas bandeiras, nossas festas de gente solar —, deixaremos que levante o pé. Para chutar precisa de um pé levantado. Já o tem. E, capoeiras da esperança, daremos nossa rasteira no que precariamente ficou no chão. E ele se estatelará, como cedo ou tarde se esborracham os que acreditam que podem matar a esperança. Vai ser ridículo, como o outro, que, cheio de si, chutou a imagem pensando chutar a santa. Vai ser ridículo. Francamente, olhando bem, já é.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)