Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Um quarto de vida

Se a PEC do Fim do Mundo passar, adeus

* Leia no site dO Globo ou abaixo (22/10/2016)

Vinte anos dá um quarto da expectativa de vida para quem mamou leite A, foi à creche e vive no Sul-Sudeste do Brasil. Nos primeiros 20 é exatamente quando se estuda. Os afortunados da vida vão da creche e pré-escola ao dia da colação de grau na universidade nesse período. Os que se espicham pela pós-graduação vão aos 25, 30. Não faz muita diferença. Serão mais dez anos de decepção. Podia ser, costumava ser o melhor tempo da vida. Se a PEC do Fim do Mundo passar, adeus.

Por que esse projeto de emenda constitucional é do fim do mundo? Porque, a pretexto de estabelecer um limite para o gasto público, que é coisa boa, põe um teto para a vida e a esperança. Dizem que não. Que a educação e a saúde não serão atingidas, fiquem tranquilos. — Mas por que ficaríamos tranquilos com a política econômica de um governo que se dispõe a usar receitas que até o FMI já considera ineficazes? De custo social inaceitável. E depois, como pode haver tranquilidade diante de um plano que, em vez de agir como primavera, anuncia um inverno polar? A palavra do dia, a palavra de ordem é “congelar”. Já arrepia, no nosso trópico úmido. E projeta uma paisagem monotonamente branca, sem alegrias de cor, por muito tempo adiante. Vinte anos. Vinte anos!

A educação precisa de água abundante. De rios transbordando. De chuva boa. A educação devia ser florida. No dia em que escrevo (é segunda; até sábado não sei se as calotas do Congresso já terão acabado de se tornar polares), ela está no mínimo árida. A escola já foi risonha e franca. Dizia-se assim antigamente. Ainda peguei esse dizer. E a coisa da qual isso se dizia. Risonha e franca. Não é mais risonha onde é franca. Franca quer dizer: gratuita. Era a escola gratuita, pública, aberta a todos (“franca” também é a característica do que é de acesso desimpedido, franqueado). Com o tempo e o dar de ombros criminoso, ficou triste. Aos pedaços. Com goteiras de desesperança. Paredes derruídas de abandono. A coisa mais triste é o abandono. Um cachorro abandonado já dá pena. Comove os sensíveis. Uma criança abandonada paralisa o coração. É uma dor mortal. — O Estado abandonou suas crianças. As que precisam dele. Para as outras os pais vão dando seu precário jeito. Mas essas, as crianças pobres, ficaram na chuva.

No ensino superior, é verdade, fez-se alguma coisa na última década e pouco. As universidades tiveram estímulos para crescer e adquirir uma certa qualidade. Meninas e meninos do Acre, do Piauí, ganharam condições de vir estudar na UFRJ. Condições acadêmicas. A pobreza (às vezes “remediada”, como se diz) continua a rondar de perto. Mas estão vindo. As salas de aula das universidades multiplicaram sotaques. Ficaram bonitas. Mas lá embaixo na escala das idades a escola pública vai de tropeço em catástrofe. A União não chega lá. Os Estados e municípios alastraram um deserto.

Pois agora ficará tudo congelado. Por 20 anos. Vinte anos! Um quarto de vida! Para a educação, o tempo mais importante. O único. Mas não vão ligar o freezer em 2017, prometeram. Só em 2018. Ah, bom, que alívio! Certamente nesse ano de sursis vão elevar o gasto com educação a um nível digno. (Alguém acredita?) E depois, congelamento. Mas o mínimo constitucional está garantido! Não, imaginem, nada abaixo do mínimo! Pensando bem, isso quer dizer, em português que se compreenda: o mínimo é o máximo. Daí não passa. O mercado, que tem seus direitos (mas não esse) pode ficar aliviado. Bom sinal. Austeridade. — A austeridade às vezes é o emburramento das pessoas que não receberam a graça de serem generosas.

Muito bem. Vinte anos. Nesse tempo o país se apruma, a inflação recua, o emprego retorna, o PIB cresce. Voltamos aos anos 2000, mas com a receita inversa. Gastos sociais na rédea curta (porque não têm retorno passível de ir para um balanço econômico fazendo boa figura). Bolo crescendo para ser dividido, lá um dia, na ordem direta da acumulação e na ordem inversa da fome. E arrecadação ascendente. Nisso são bons os donos do congelador. De modo que um dia haverá finalmente um dinheirinho (como houve nos anos 2000, e já houvera antes) sobrando. Que alegria. Agora vamos aplicar. Escolham aí os setores mais necessitados. Os congelados estão fora da conta, porque, justamente, estão congelados, e ainda não chegou a hora do degelo. Vinte anos. Ponham esse dinheiro onde ele será bem vindo, porque para quem tem, ter mais é sempre uma bênção. Vinda do Estado, então... O maná do deserto. (Esses não atravessaram nenhum deserto. Mas a metáfora é bíblica. Faz bom efeito.)

Mas o prazo pode ser revisto. Se tudo for bem quem sabe em dez anos? Que tal? Dez anos. Bom, bom... Se é assim... Uma desesperança dividida por dois dá quanto? Vamos fazer as contas. Quem sabe haja luz no fim do tal túnel. Uma luz fria.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)