Na madrugada de 25 de abril de 1974, as estações de rádio de Lisboa começaram a tocar “Grândola, vila morena”, canção do grande compositor português Zeca Afonso. Dizia assim: “em cada esquina um amigo/em cada rosto igualdade/Grândola, vila morena/terra da fraternidade”. E também: “O povo é quem mais ordena/dentro de ti, ó cidade”. Igualdade, fraternidade, democracia. Um manifesto e um programa político. Naquela madrugada, estava fora de hora na programação noturna. “Grândola, vila morena” foi a senha para a revolução portuguesa. A linda Revolução dos Cravos.
Portugal vivera sob a ditadura de Oliveira Salazar por 37 anos. O ditador, morto em 1970, deixara como herdeiro político o professor Marcelo Caetano, mais liberal, mas comprometido com o regime de ordem interna, sem partidos, e com a “guerra no ultramar”, eufemismo para a repressão aos movimentos de libertação das colônias portuguesas na África. E com a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a temida Pide, permanente em sua intervenção na vida privada das pessoas “suspeitas”. Poucos não eram suspeitos. — E pronto: frentes de irritação civil e de descontentamento militar se avolumaram, o povo estava que não aguentava mais e formou-se o Movimento das Forças Armadas, o MFA. “Grândola, vila morena” foi a senha para o MFA marchar sobre Lisboa para derrubar o governo ditatorial e trazer de volta a liberdade do povo português, a essa altura já sequestrada há 41 anos. O dobro do tempo da nossa ditadura, do lado de baixo do Equador.
O MFA venceu. Era constituído por jovens oficiais, capitães e majores, os “capitães de abril”. Foi preciso um militar conservador, o general Spínola, como fiador da ordem que permitiria a Marcelo Caetano chegar sem percalços ao avião que o traria ao exílio no Brasil. A ditadura daqui recebeu de braços abertos o último ditador de lá. E o golpe de Estado se concretizou.
Foi um golpe de Estado. Uma parte das estruturas constituídas se mobilizou contra a outra e lhe tomou o poder. Um golpe militar. Com complicadas negociações entre os capitães que estavam à frente dos tanques e os oficiais graduados, que estavam por trás das patentes. Aquilo podia desandar rapidamente de um movimento pela liberdade política, pela igualdade social, pela fraternidade de um povo, pela democracia e pelo fim da guerra para a substituição de um ditador civil por outro, militar, com a manutenção completa do status quo. Não desandou porque o povo de Lisboa foi às ruas, tomou a cidade e cantou em uníssono o apoio ao golpe libertador: “O povo está/com o MFA!” Alguém se lembrou de arrematar todos os cravos das floristas das ruas da cidade e distribuí-los entre os soldados. Logo os cravos enfeitavam os canos dos fuzis e os canhões dos tanques. Não houve derramamento de sangue. O povo nas ruas transformou o golpe em revolução. A Revolução dos Cravos, o 25 de Abril.
Do exílio correram a Lisboa os líderes dos proscritos partidos socialista, Mário Soares, e comunista, Álvaro Cunhal. Outros partidos se formaram, à esquerda e à direita. O embate político foi intenso. Discutiu-se com paixão reforma agrária. Governos locais. O MFA como garantia da vontade política de transformação socialista. Socialismo deixou de ser palavra maldita. Com exceção do Partido Comunista, que mantivera o autoritarismo de mão única do stalinismo, os demais adotaram com entusiasmo a via eleitoral. Quarenta e um anos sem voto e urna...
Em 1975, 25 de abril, houve as primeiras eleições. Os socialistas venceram. A revolução se institucionalizou. Não houve violências. Algumas famílias se dividiram asperamente porque parte era socialista do MDP-CDE, e outra parte socialista do Movimento de Esquerda Revolucionária, o MES. Emburramentos sem sangue.
Estivemos lá para acompanhar as eleições. Corremos várias cidades. Era tudo festa. Fomos ao 1º de Maio no Campo Maior. O brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho jogou do seu helicóptero cravos vermelhos sobre a multidão. Dentro da passeata alguns entoavam “Socialismo sim, vigarice não!” Dissensos democráticos. O primeiro 1º de Maio pós-revolução foi uma grande festa. Como a das eleições.
Depois as rotinas, a política, a Europa entraram nas composições e acordos. A alternância no poder continuou a produzir avanços e recuos. Como é da História. As revoluções que imobilizam o tempo e o movimento esclerosam suas conquistas. Forjam um povo uniforme, sem divergências estratégicas e interesses discrepantes. Revoluções assim acabam porque não continuam. E continuar às vezes é dar marcha à ré. É assim. Não é mau. Como a Natureza, a História não dá saltos.
A festa continua lá. É patrimônio comum dos portugueses. Os cravos não murcharam: são emblemáticos demais para sofrerem a lei da morte. Não, não murcharam tua festa, pá. Fico contente.