Houve um tempo, na Grécia, tão recuado que o chamamos “arcaico” e perdemos o contato com ele, em que as diferenças e divergências sérias eram resolvidas, ou pelo menos reduzidas, por composição. Na prática, era como negociar com boas bases e obter acordos de que ninguém precisaria depois se envergonhar. Acordos programáticos, preservando a essência de cada participante. Por exemplo: havia deusas e deuses, homens e mulheres. Tinham, todos, seus interesses próprios. Muitas vezes andavam aos tapas. Mas podiam se aproximar, quando havia suficiente convergência, e até parcialmente se fundir. Semideuses, semideusas eram produtos desses acordos. Como, entre cavalos e homens, os centauros. E as ninfas, entre as águas e as mulheres. Havia violências, claro, porque a vida pode ser violenta. Mas não nos acordos. Esses eram como que naturais. Não eram frankensteins como os que conhecemos na nossa política. Um semideus era um bom acordo. Herdava a astúcia dos deuses e as boas imperfeições humanas. A altivez e a força. — Hércules era um semideus.
Filho do rei dos deuses, Zeus, e da mortal Alcmena, Hércules foi deles todos o que mais vivo ficou para nós depois que o contato com esses tempos míticos se rompeu. Conhecemos seus 12 Trabalhos, desafios que a ciumenta Hera, mulher de Zeus, lhe lançara para testar o filho da infidelidade do marido. Hércules passou nas mãos de Hera o pão que o diabo amassou. Um dos desafios foi limpar as cavalariças de Áugias.
Áugias era rei da cidade grega de Elis, e possuía estábulos imensos, onde vivia um gado imortal. Isso também quer dizer: estercava um gado imortal, eternamente. As cavalariças de Áugias nunca tinham sido limpas. O desafio era Hércules lavá-las em um só dia. Olhando assim, impossível. Mas para feitos impossíveis é que se faziam semideuses. Em um dia os estábulos do rei brilhavam de limpeza e escorriam água fresca.
O que Hércules fez? Passava por perto um belo rio, o Alfeu. O semideus desviou o curso do rio e o fez passar por dentro das cavalariças. Um gesto ousado e claro. E definitivo. E simples. Água limpa esterco. É natural. Não tem artifícios. Operação perfeita. Não cavou passagens laterais, para deixar vazar um pouco por aqui, um pouco por lá. Não abriu e fechou torneiras. Nem chamou os repórteres do tempo para divulgarem a conta-gotas os feitos de um semideus calculista. Não aprisionou água em alguns lugares, por bastante tempo, para, acumulada, acumulada, estourar de repente em manifestações de raiva e espuma. Não. Foi lá, convocou uma enxurrada de limpeza cirúrgica. Sem adiamentos e surpresas. De uma vez só. Sem etapas infindáveis. Para não agir de modo rápido e seguro, Hércules precisaria ter uma agenda mais ampla do que a já difícil limpeza do entulho fétido. Um programa político, por exemplo. Como o de derrubar Áugias. Se Áugias fosse o objetivo final de Hércules, táticas de esticamento do tempo seriam compreensíveis. Esse desejo político seria uma explicação para retenções de fluxos, vazamentos que não limpam, histórias contadas antes de feitas. E, de fato, Hércules chamou Áugias para a briga. Guerreou com ele e com os filhos. Meteu família no meio. Mas depois. Primeiro, limpou o esterco de séculos. Tudo limpo, foi fazer política, que na época era assim que se fazia. E o fez claramente. Não misturou as coisas. Uma era desafio imposto pela deusa. Precisava urgentemente ser cumprido. Ninguém aguentava mais. A sujeira era uma barbaridade. Contaminava tudo no reino. A outra era ambição. Não tinha nada de divino. Era assunto de Hércules com o seu desejo. Nenhuma desculpa acima disso. De modo que foi lá e guerreou. Pronto. O trabalho estava feito. E o rei desafiado para a guerra.
Mas isso foi no tempo em que havia semideuses. E as coisas se jogavam às claras. As necessárias eram feitas porque eram necessárias. E a guerra, a política, não tinham nada com isso. Depois os semideuses acabaram. Os condutores e “homens providenciais” quiseram tomar o seu lugar — e até, por cúmulo, falar em nome de Deus. Que Ele nos livre dos homens providenciais! Eles se imaginam acima dos valores comuns. E enxergam nessa superioridade um sinal de missão. Atuam com astúcia às vezes, às vezes com brutalidade. Parece que, no fundo, até se sentem meio servos da verdade. Mas em nome dela meio-mentem, meio-escondem, meio-mostram. No fim, as cavalariças estão convulsionadas, os touros berram, e o esterco só foi revirado. Os estábulos imortais continuam sujos. Mas a população do reino se impressiona com a operosidade dos candidatos a semideus.
A ponto de não se dar conta de que eles estão, na verdade, só de olho no rei. Se puderem pegá-lo, danem-se os touros. Quem fez a merda que a limpe.