Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Uma oração pela paz

Francisco tomou a si evitar o dia seguinte. Seu papado é admirável na sua estratégia

* Leia no site dO Globo ou abaixo (01/10/2016)

Giovanni di Pietro di Bernardone nasceu na Itália em 1182 de família abastada e teve uma juventude descuidada e festeira. Sem muito sucesso, foi à guerra. Elegeram-no “rei da juventude”. Mas andava inquieto. Tinha sonhos. Um dia pareceu-lhe ouvir um lamento, mais do que uma ordem: “Reconstrói a minha igreja”. Tomou a frase ao pé da letra, e, como estava na capela de São Damião em ruínas, pôs logo mãos à obra. Reergueu a pequena igreja. Mas tinha escutado com ouvido pouco. A voz lhe pedira que reparasse a outra, a grande Igreja. A voz de Cristo, que vinha de um crucifixo na igrejinha pobre. O jovem Giovanni entendeu. E viveu uma vida impecavelmente santa. Era também chamado Francesco, por causa do seu amor à música francesa. A cidade era Assis. Nós o conhecemos como São Francisco de Assis.

Há uma semana o papa Francisco teve a companhia de líderes de quase todas as religiões do planeta para uma jornada de orações pela paz. Os religiosos já haviam aceitado, como único território neutro para o encontro da diversidade da fé, a cidade de Assis. João Paulo II os convidara para lá, para o primeiro encontro de oração, há 30 anos. Cada um rezara ao modo da sua crença. E todos rezaram juntos. Trinta anos depois, Francisco refez o gesto. Por alguns dias, a palavra religião não ecoou a terrível palavra guerra. Evocou a paz. Paulo VI disse que o novo nome do amor é justiça. Francisco ensina que a qualidade da justiça é a paz.

No belo livro de Le Gendre, “Conféssions d’un Cardinal” (Confissões de um Cardeal), que precisa muito ser traduzido, o Cardeal chama a atenção do jornalista para o terceiro colocado no conclave que elegeu Bento XVI. O cardeal Jorge Maria Bergoglio, de Buenos Aires. E profetiza: ainda vamos ouvir falar desse homem. Em 2013 o padre Bergoglio foi eleito papa. Escolheu o nome de Francisco. E com ele tomou sobre os ombros a reconstrução da Igreja.

No livro, o Cardeal conversa com o jornalista sobre vários problemas da Igreja Católica, e o vai preparando para o núcleo da sua confissão: estava, com outros, começando a pensar sobre o day after: o primeiro dia depois do fim da Igreja. A Barca de Pedro, como ainda é chamada, há muito tempo, séculos, teria perdido seu rumo. Já não pesca homens. Ama demais o poder. E o dinheiro. Santa e pecadora, como sempre se concebeu, está condescendente demais com os próprios pecados. Eurocêntrica, não pensa com a lógica do mundo, não ama suficientemente o mundo, onde cresce na América Latina, na Ásia, sobretudo na África, enquanto encolhe na Europa pós-moderna, que talvez tenha perdido o gosto da Graça. O primeiro dia depois da Igreja! Que coisa terrível de se pensar. Que desnorteamento sobre o que fazer. Voltar às catacumbas? Ir dispersamente para perto das pessoas que sofrem? O Cardeal passara dias, na Ásia, silencioso à cabeceira de um homem que morria de Aids. Na sua cultura isso era uma vergonha sem remissão. Ele morreria sozinho. Deve ser terrível morrer sozinho. E aquele padre católico sentava-se à sua cabeceira e esperava. Não procurava convertê-lo. Não rezava com ele. Testemunhava. Punha uma presença humana atenta junto da morte solitária e vergonhosa. O homem não morreu só. E soube que sua humanidade fora reconhecida. Talvez tenha morrido em paz.

Francisco tomou a si evitar o dia seguinte. Seu papado é admirável na sua estratégia. A Cúria, poderosa, não pode impedi-lo de ser simples. De morar na Casa de Santa Marta, onde toma seu café da manhã com pessoas comuns, padres de passagem por Roma, e sabe das novidades. E depois vai trabalhar, como todos vamos. Bem naturalmente. Usa sapatos surrados, que lhe caem bem, como não lhe assentariam os vermelhos feitos por encomenda que os papas usavam. Nas viagens, carrega sua pasta velha. É uma imagem de encantadora simplicidade vê-lo subir as escadas dos aviões com sua valise de mascate da fé. Muita coisa nele é encantadora, a começar pelo sorriso de desconcertante ternura. Vai dizendo que é possível a única organização suficientemente mundial para opor a ternura de Deus à globalização financeira mover-se para longe do poder, na direção do sofrimento dos pobres do mundo, os do espírito e os da carne, os que sofrem de tristeza, desencanto e fome. Mostra como é.

Gosto de sonhar que, nessa Jornada de Oração, quando se ajoelhou diante do túmulo de São Francisco na Basílica Menor, o papa tenha ouvido uma voz que lhe dizia: Francisco, reconstrói a nossa Igreja. E que, atingido no mais profundo de si, nessa região de nós que não conhecemos, onde habita Deus, Francisco, o papa, tenha entendido exatamente o que lhe pedia, com a mais terna humildade, o outro Francisco, o santo, cuja festa a Igreja comemora na semana que vem.

Que essa tenha sido a nova Oração de São Francisco. A mais doce oração pela justiça, que é a paz.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)