Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

O menino de Aleppo

O rosto daquele garoto retirado de sob pedras arrasadas ocupa todo o espaço dos meus olhos

* Leia no site dO Globo ou abaixo (17/09/2016)

O rosto do menino de Aleppo é a síntese de carne do terror das vidas largadas ao azar da sorte. Retirado de sob pedras arrasadas e levado depressa a uma ambulância, e ali deixado por quem corria a desenterrar outros meninos, pais, cachorros assustados. Velhinhas mortas. Sapatos desparelhados. Muito a desenterrar, esperanças à flor da pele. Realidade à flor do medo. E a morte, a morte à flor de um luto que já não há como fazer. Destroços não mais humanos. Uma parede caída. Um homem, uma mulher. Tudo adormecido para sempre sob as bombas sem olhos de Aleppo.

Sozinho na ambulância, o menino nos mostrou seus olhos. Não sabia que uma câmera friamente atormentada o trouxe à minha casa com seu rosto sem um movimento, olhos abertos sobre nada. Eu o vi. Fui sua testemunha. Chorei as lágrimas que não corriam no seu rosto. Seco. Menos pelo sangue que cobria seu lado esquerdo. Sofri a impotência de quem não pode se mover para a vingança. No primeiro impulso, não pensei em justiça. Tornei-me um momentâneo monstro. Comovido até um lugar do coração que nem suspeitava que existisse, mas coberto pela epiderme da violência. “Minha é a vingança”, diz o Senhor. Mas naquele momento ele a partilharia comigo. “Amai os vossos inimigos”, ensinou a doçura difícil de Jesus. Mas seus olhos fechados sobre a cruz não veriam o ódio avançar, dissimulado, no meu coração.

Foi rápido. A violência cedeu, só me lembro agora do fato dela, não tenho mais seu gosto ruim. Resta a memória nos meus olhos. Estão espantadamente fixados sobre aquele rosto sem expressão. Nem raiva, nem medo, nem a tristeza do abandono, da morte de que ele foi poupado para... a vida? Que vida?, ele perguntaria. Mas seus olhos não perguntavam nada. Seus olhos abertos. Seus olhos infinitos.

Sua mão se moveu devagar, passou sobre o rosto com leveza de carícia. O menino de Aleppo, que já não parecia saber de nada, soube pôr carinho na mão com que afagou seu rosto doloroso. A mão subiu devagar, quase inexpressiva. Encontrou o sangue. Foi o único momento em que vi uma sombra passar pelos seus olhos. Retirou a mão depressa, olhou para ela e a escondeu sob a perna. Pareceu que o sangue do rosto tinha chegado de repente à sua alma pequenina. E sentiu vergonha. Escondeu-a com vergonha. O menino de Aleppo teve vergonha do seu sangue! Na poltrona confortável em que eu o encarava entre a compaixão e o ódio, tive imensa vergonha da vergonha dele. Sua imobilidade de testemunha impassível da morte se quebrou para uma vergonha que não era dele. Era minha. Meu rosto não estava coberto de sangue. A vergonha do menino de Aleppo era minha. Era de mim!

Sentia-se olhado? Percebeu que um olho de câmera, profissional, fixava sua imagem para uma eternidade provisória? Não quis ser visto como um menino que não brincava mais há muito tempo, um não menino da guerra estúpida? O certo é que teve vergonha. Escondeu a mão, apagou o sangue. E continuou olhando para mim. Nada havia nos seus olhos. Mas vi nele todos os sentimentos, que me apontavam o dedo.

Dirão meus colegas do tempo em que me arrisquei na psicanálise: ele estava em choque; você viveu um momento de onipotência. Podia ter salvo o menino. Quem sabe acabar com a guerra civil, a guerra de invasão, a guerra política por cima da dos fuzis, dos campos minados e a das armas químicas. Mas não pôde. A sua vergonha foi a da sua onipotência quebrada naquele rosto. — Desculpem, meus fraternos amigos. Vocês não sabem. Não estavam lá. Eu vi o rosto. Eu vi o sangue. Eu vi a mão, a pressa de retirá-la, limpá-la no oculto do banco, da perna. Eu vi a vergonha. Eu. Não me digam o que se passava ali. Só eu sei. Porque o menino de Aleppo olhava para mim. Não sabia, nem imaginava o estrago que seu olhar vazio, sem emoção, causaria no confortável outro lado do planeta. Mas eu sei. Por isso testemunho. E pelas palavras, inapropriadas a tanta dor, me aproximo daquela ambulância, entro nela junto com o socorrista que rapidamente deposita outro corpo e corre para mais encontros com a morte. Chego perto. Olho-o com espanto. Na sua presença de carne machucada, parece uma imagem atemporal da resignação do sofrimento. Uma imagem. Não um corpo. Minha mão vai lenta, com a reverência de quem se aproxima do sagrado, e toca seu rosto com a mesma leveza com que ele o tocou. No mesmo lugar. O sangue dele agora está na minha mão. Finalmente sei de onde vem minha vergonha. E não sei o que fazer com ela.

Sim, hoje talvez devesse escrever sobre os dois 11 de setembro, o das torres gêmeas que mataram milhares de pessoas e tantos sonhos. O de Allende, que matou uma pessoa e tantos sonhos. Mas não pude. O menino de Aleppo ocupa todo o espaço dos meus olhos. Pesa. Precisei mostrá-lo mais uma vez. E deixar que finalmente descanse de mim.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)