Isso foi o que de leve, e irônico, ficou do massacre da última semana. Dito assim — pequena transformação — teria caído bem naquele ambiente saturado de versões e meias-verdades. Uma meia-verdade é uma mentira inteira. Não há verdade pelo meio. Houve debates, teses se opuseram, fez-se a mímica do contraditório. Mas a verdade, que não é senadora, não estava lá. A verdade é divina. Seu lugar não era mesmo ali. — Esta coluna é um pequeno acalanto para a tristeza da verdade.
É, a verdade é difícil. Não vem de graça. Pede um trabalho de lupa. Estão faltando lupas. E trabalho honesto em procurar. Pensei no paradoxo do mentiroso. É assim. Vem um homem e diz: “Eu minto”. Isso é o que ele diz. Mas pode ser exatamente o contrário. Basta que ele de fato minta. Neste caso o dito corresponde à realidade, e o homem que declara que mente diz a verdade. Ou ele, na verdade, não mente, e então “Eu minto” é uma mentira. Moral da história: a verdade não depende do que se diz, mas de quem se é. E do que se faz. Da concordância e discordância entre o que se faz e o que se diz que se faz. — Naqueles dias, a verdade não foi convidada para a festa.
Mas o que é verdade? Noel sabia: “A verdade, meu amor, mora num poço/ É Pilatos lá na Bília quem o diz.” Hoje, aqui, o poço não foi escavado. A água está turva. Jesus, naquele tempo, não respondeu a Pilatos quando ele, retoricamente, lhe perguntou: “Mas o que é a verdade?” Jesus bem sabia. Já tinha dito: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” E se calou. Essa era a resposta. Um dos velhos cínicos gregos, que denunciavam a hipocrisia com ações, não com palavras, não teria feito melhor. Mas a pergunta ficou no ar, porque corresponde a uma agonia muito antiga. Não possuímos a verdade. Não sabemos o que ela é. E isso nos desnorteia. Mas também nos dá norte para a grande questão da filosofia: O que é verdade?
Desde cedo os filósofos foram fazendo seus ensaios. Primeiro, no século VI a. C., os pré-socráticos ligaram verdade e não verdade, aparência e ocultação. Foi uma compreensão de grande beleza, porque não tinha a ver com a discurseira do Ocidente, mas com a vida e o mundo. Tudo se mostra e também se esconde, brilha e se apaga, como um farol. A verdade está no comum pertencimento do brilho à escuridão, da escuridão à luz. Perdemos essa bonita intuição. Tanto tempo passou! Já usei aqui, para dar-lhe um pouco de familiaridade, o exemplo das marés. A maré alta precisa que a terra se esconda para que o mar apareça. A maré baixa necessita a retração do mar: aí a terra se mostra. Foi assim que pensaram os pré-socráticos: escondimento/aparecimento; encobrimento/desencobrimento. Foi daí que tiramos a palavra “descoberta” para falar da verdade. Esquecemos o retraimento, a sombra sem a qual descoberta não há. Saímos do mundo da vida para a ordem dos discursos.
Essa reviravolta foi feita pelos grandes filósofos do século IV a. C., Platão e Aristóteles. Inventaram dialéticas e lógicas, artes da fala e do pensamento. A vida, isso que corre fora das palavras, é perigosa, argumentavam. Honestamente. Eles de fato procuravam a verdade, e desejavam protegê-la dos seus riscos. A verdade ficou na ordem do que se diz, se se diz bem, com correção.
No século XIII Santo Tomás encontrou uma bela formulação, que voltou a ter consideração pelo mundo. Mas aí o mundo, a vida, já eram “as coisas’’, as criaturas. A definição: “Adequação da coisa ao intelecto e do intelecto à coisa”. É preciso agora que o que se diz concorde com o que é. É necessário poder provar. Essa prova se fez, primeiro, pela evidência lógica — e aí ainda remetia à experiência aristotélica da verdade. Santo Tomás foi o mais grandioso discípulo de Aristóteles, tantos séculos depois. Mais tarde, com o advento das ciências, a partir dos séculos XVI/XVII, provar passou a exigir observação real, experimentação e cálculo. E a descoberta das leis que regem a verdade do Real. Essa concepção ainda nos é familiar.
Hoje, verdade não há mais. É o que nos ensinam os pós-modernos. Porque a verdade só pode ser ou não ser. Já se viu, não há meia verdade. E, dizem eles, não há mais esse tipo de coisa absoluta. O que há são versões. Opiniões. Narrativas. (Essa palavra tornou-se irritantemente frequente nos últimos dias.)
Mas a verdade, na sua sombra que sofre, está lá. Ela nos diz que um fato ou aconteceu, ou não. Ou é o que se diz dele, ou não. O sofrimento da verdade é que ninguém mais esteja interessado nisso. Uma boa versão (“robusta”, gostam de dizer) dá conta do recado. Recado... A verdade, coitada, que recobre a vida e o mundo, recado...
Vida dura, a da verdade. Mas um dia ela volta. E, quando sua luz iluminar os plenários, vai se ver quem afinal estava nu.