É insuportável que para um contingente humano ser livre outro precise não ser; para que haja igualdade seja necessário que nem todos sejam iguais. Desconfio de que quem pensa assim padece de um modo de olhar para o passado que descarta a possibilidade de um tempo diferente. Não é o que a História nos ensina, mas esse fatalismo parece estar entranhado em nós como uma sujeira das que não se lavam. “Sempre foi assim. Não é agora que vai mudar. Isso é utopia.”
Utopia, justamente. Vamos começar por aí. Utópica é uma ideia, um projeto, que não tem lugar, nunca ocorreu, não tem passado. É desejo e imaginação de um outro futuro. Cristo foi um magnífico utópico. E o disse de maneira definitiva: “Meu Reino não é deste mundo”. Com essa utopia podem-se fazer duas coisas: abandonar esse mundo, em que não cabe o Reino, que um dia virá, mas em outro lugar; ou mudar esse mundo, para que o Reino possa vir. Jesus deu a boa pista na única oração que ensinou: “Venha a nós o teu Reino”. Aqui. Araremos o campo para as suas sementes. — Não se pode dizer que a utopia de Cristo tenha sido um desvario futurista do século I na Galileia. Ela mudou o mundo. O que nos disse foi: somos todos igualmente filhos de Deus; e somos todos livres para querer o Reino ou não.
Quem olha mal para o passado dirá: “Não deu certo. Ele foi morto pelas potências da época. E sua sobrevivência é apenas o efeito de uma outra potência, a Igreja. Um poder o matou. Outro poder o manipula. Nada escapa ao Poder”. — O espírito desses juízes é obcecado pela obediência a prazos. Como se dissessem: “Essa ideia tem tanto tempo para demonstrar sua viabilidade. Se não conseguir, renegue-se. Não é possível”. Eles não olham de verdade para a História, que se move devagar. Lentamente ocorrem as mudanças que não aconteceriam se as utopias não tivessem, num fulgurante momento, rompido a lógica da repetição do passado. É assim que elas se realizam: incompletamente e devagar.
A esquerda ama as utopias. Porque seu tempo é o futuro. Seu desejo é a transformação. E aqui reside a questão mais delicada. É que o futuro não obedece a prazos. Monta-se pedaço a pedaço, lentamente. Lentamente. O tempo de uma revolução pode ser exasperante. E é aí que liberdade e igualdade podem se dissociar. Separam-se por falta de confiança no futuro — que faz zigue-zagues. Por medo de que o passado revenha e aniquile as conquistas. Por falta de confiança no povo.
É preciso confiar na História: ela não é traçada em linha reta. Devemos estar de acordo com os seus retorcimentos. Amá-los. Ou não a amaremos, apenas desejaremos o seu fim, a nosso favor, e o mais rápido possível. Péssimo para uma generosa utopia.
E é preciso confiar no povo. Se não é para ele que se fazem as reformas do mundo, para quem as sonhamos, então? Ora, o povo é contraditório e dividido. Uma “vanguarda” que não o ame assim não está preparada para ele. Seu trabalho de meter a mão no tempo deve estar em condições de, se essa for a direção da História real, perder e começar de novo. Sonhar é coisa para pessoas pacientes. Quem impõe prazos e dita direções mata o tempo.
Quem anda junto com o tempo e o povo se espanta com a dissociação de igualdade e liberdade. Garantir a cada um aquilo de que precisa e pedir de cada um aquilo que pode — não é esse o modo de assegurar a igualdade respeitando as diferenças? E de, ao mesmo tempo, libertar as pessoas da violência que há em umas julgarem ter o direito de dominar as outras — por razões de classe, de cultura, de poder? É possível tratar desigualmente os desiguais, para instituir a igualdade, sem ao mesmo tempo respeitar as diferenças como princípio de liberdade? Existência digna e consciência livre se opõem onde, meu Deus?
Ouço dizer: “Nunca se fez. É preciso limitar um desses polos para deixar crescer o outro. Não há precedentes históricos”. Esse desamor aos ritmos lentos da História e à diversidade de interesses e consciências mata as utopias. É preciso ser mais ousado e mais modesto. Como foram os portugueses na sua linda revolução de 1974. Tenho grande carinho pela Revolução dos Cravos. É a minha. Um dia ainda vou escrever sobre ela. Mas, no básico, foi assim:
Portugal viveu 41 anos a ditadura de Salazar. E uma situação de guerra sem fim na África. Um dia os jovens oficiais das forças armadas decidiram que iam às ruas. A senha, uma canção popular. O povo pôs flores nos canos dos fuzis. Derrubou-se a ditadura. Organizaram-se partidos — de esquerda e de direita. Fizeram-se eleições. A esquerda ganhou. Depois perdeu. Depois ganhou. Fizeram uma Constituição em que o socialismo está inscrito como meta. Às vezes há reformas nessa direção. Às vezes, retrocessos. No básico, avançou-se. E é assim mesmo. Lá ainda se sonha, a História ainda não acabou.