Jogadores de xadrez são em geral considerados, com os matemáticos, a nata da inteligência calculadora da Humanidade. Desafiam-se para jogos. Têm público e torcida. Suas partidas valem pontos. Há sempre, a cada momento, o campeão do mundo, o maior mestre internacional. — Boris Kasparov foi esse na década de 90 do século passado. E a IBM o desafiou para uma melhor de seis contra o seu computador Deep Blue. Dois gênios calculadores. A máquina e o homem.
Kasparov poderia ter dito que não. O xadrez é uma grande arte. Os computadores não são artistas. O xadrez é magistralmente pensado. Computadores calculam, mas não pensam. Kasparov podia ter dito não. — Quero olhar nos olhos o meu adversário. Vê-lo se espantar com lances meus inesperados. Suar contra o relógio implacável. Irritar-se com a minha frieza. E perder. Máquinas não fazem isso. Digo que não. — Kasparov disse que sim. Era um homem. Homens são afetados pela desmesura do orgulho. Kasparov disse que sim.
Deep Blue dispunha de milhões de jogadas e combinações dadas por outros grandes mestres internacionais, que trabalhavam há décadas na máquina enxadrista. A cada jogada do adversário, calculava velocissimamente e aprendia a conhecê-lo melhor. Ganhou, perdeu e empatou. No final, o homem venceu o desafio. Apertado, mas venceu. Era esperado. Kasparov era o mestre. Deep Blue era um computador. Fim de jogo.
E podia ter ficado por aí. Mas não. O grande mestre quis reafirmar a superioridade da arte e do pensamento sobre o cálculo frio. No ano seguinte, foi ele o desafiante. A IBM, claro, disse que sim. E dessa vez Kasparov perdeu. A cena em que ele abandona a mesa, desolado, vive até hoje em câmera lenta na memória estarrecida de quem se interessa por essas coisas. A máquina venceu o homem!
Foi essa mesma frase que ouvi dos meus colegas quando, no dia seguinte, abatido até o fundo da alma triste, entrei no meu centro de pesquisa na Escola de Comunicação da UFRJ. “A máquina venceu o homem!” E o tom era de júbilo! Meus colegas, mais moços, deliravam. “Carbono, silício, somos todos máquinas!” Foi o que disseram diante da espantada consternação do seu professor. Todos máquinas!! Passei uma semana em profundo espanto. A máquina venceu o homem...
Corte. Século XXI. Uma filosofia autointitulada trans-humanismo entra em cena. Tem por base estudos totalmente contemporâneos do desafio de Deep Blue. Foi em 1996 e 1997 que se pensou a noção de que, ao invés de acabar por desordem crescente, chamada “entropia”, a vida poderia ser prolongada até os limites, mesmo, da imortalidade. À entropia os cientistas que deram origem ao que veio a se chamar trans-humanismo opuseram o termo antônimo “extropia”. A extropia pode garantir à Humanidade um futuro ilimitado — e feliz. O extropismo é otimista. Tem desmesurada confiança na capacidade humana de superar suas limitações naturais. E para isso aposta tudo na tecnologia. Sobretudo, no upload do cérebro para computadores. A mente humana ciberneticamente preservada da morte. Essa é uma utopia de cair o queixo! Há não muito tempo envelhecer não era óbvio. Morria-se moço. Ou envelhecia-se cedo, pelos 50 anos. Depois, passou-se a envelhecer velho mesmo, e a Humanidade ainda não aprendeu a lidar com isso. Com seus velhos que ocupam espaço demais sobre a Terra. Pois agora está-se tornando possível não morrer antes mesmo de envelhecer. Isso é mais do que a nossa inteligência limitada pelo corpo que pede água, comida, abrigo e sexo pode compreender. Uma imortalidade trans-humana! De novo, as máquinas nos vencendo, ultrapassando-nos, tornando-nos imortais quando, paradoxalmente, nos fazem quase desnecessários. Já imagino a reação aterrada de quem se deixa levar pelos mitos de superioridade das máquinas. De quem viu em “2001 — Uma odisseia no espaço” uma prefiguração da decadência final da Humanidade. Ouço de muito longe meu sábio avô, que tinha para si uma Bíblia totalmente particular, citando-a para mim: “Pedro, quando o homem pensar que sabe tudo, eu mudo o mundo”.
As máquinas, que inventamos para nosso uso, e a quem demos poderes quase ilimitados, estariam vindo para mudar o mundo que supúnhamos já ir conhecendo quase todo. Diante desse perigo, uma onda tecnofóbica há de levantar uma tsunami obscurantista. Pena. A tecnologia é tão boa coisa. Corte. Depois da semana em que andei destroçado pela derrota de Kasparov, dei-me subitamente conta de que, afinal, não foi o Deep Blue que venceu o desafio. Kasparov, desamparado, entregou o jogo. Derrubou o rei. O computador não sabe derrubar o rei. É preciso estar movido por intensa emoção, medo, raiva, desolação — tudo tão humano — para poder derrubar o rei. Só o homem derruba o rei. Kasparov venceu. A Humanidade continua. Xeque-mate.