Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Sobre as ‘radicalizações’

Quando se trata da polis, da ação política, os radicais são instintivamente temidos

* Leia no site dO Globo ou abaixo (30/07/2016)

“Radical” é uma dessas palavras amadas e odiadas, que dependem da conjuntura em que são ditas para merecerem ser aceitas. Ou não. Um ato radical pode ser um suicídio, e será um horror. As manobras radicais dos surfistas e skatistas são uma beleza. Uma reforma radical da estrutura tributária, depende: pode ser boa coisa se desonera os que vivem exclusivamente do seu trabalho e espalha equitativamente a contribuição que a sociedade faz a si mesma através do Estado; ou uma péssima, quando desequilibra essa partilha onerando o trabalho e liberando a especulação. “O machado está posto à raiz da árvore”, ameaçou João Batista. A árvore má tombaria a partir das suas raízes. Um corte radical. Diferente da poda dos galhos velhos que o mesmo machado pode fazer, pelas ramas. — Enfim: há radical para todos os gostos. E desgostos. Sobretudo desgostos. Porque as coisas, os atos, os efeitos radicais são em geral temidos, odiados. E no entanto...

No entanto essa é uma das palavras da aurora na nossa cultura. Significa que nada se sabe se não se for à raiz das coisas. Também se disse: ao fundamento. Ou ainda: à causa. Não é bom tomar algo por aquilo que ele é, não se enganar de raízes? Não colher brotos de bambu para uma salada de agrião, por desconhecimento da radicalidade dos agriões? Claro. Mas, quando se trata da polis, da ação política, os radicais são instintivamente temidos. Sua ação, tomando os fundamentos da sociedade pela raiz, para honrar as raízes, é logo vista como desarranjadora do equilíbrio social. Demagógica. Revolucionária. Logo, perigosa e ruim. Nesse “logo” é que mora o mal-entendido. Uma sociedade é um corpo dinâmico de História. Revolver suas raízes é um ato de afirmação do tempo. Matá-las para que as estruturas não se movam mais é um virtual assassinato. Esse, com certeza, perigoso e ruim. O pensamento e a ação radicais são bons acompanhamentos da História. Não têm nada, na sua origem, a ver com violência, pancadaria e morte.

Nessas últimas décadas tem-se reservado essa palavra para qualificar o Terror. O terrorismo, diz-se, decorre de uma radicalização. Os terroristas pinçam os insatisfeitos com o “sistema”, seja lá o que isso for, e os municiam com um ódio cego, portanto, por definição, não radical. Incapaz de olhar para as raízes das sociedades, para os fundamentos das ações. Todo ódio é cego. Padece da síndrome dos miúras, os mais agressivos touros, os que vão em frente no ataque porque se agita diante deles um pano vermelho. Não se detêm diante de nada. Querem cegamente espetar o toureiro nos seus cornos de morte. E morrem pela cegueira do seu ódio. Não são radicais — são suicidas.

Assim também os recrutados pelo Terror. Podem ser “radicalizados” pela internet, superficialmente. Como o machado destinado à poda pela rama. E são jogados no mundo para decapitar vidas. Não conhecem as raízes. Nem atingem as raízes do que atacam. Espalham medo, não semeiam revoluções. São (talvez Nelson Rodrigues os qualificasse assim) idiotas da superficialidade. O que obtêm quando assassinam desenhistas ou jovens que dançam numa casa de música? O repúdio espantado do mundo. Quando jogam bombas sobre campos de refugiados no Líbano? O repúdio irritado do mundo. Quando explodem supermercados e aeroportos ocidentais, mercados e escolas no Oriente? Ou ônibus escolares cheios de crianças? O repúdio revoltado do mundo. De um lado a outro da terra globalizada, erram seus alvos: tornam mártires as suas vítimas. Matam-se, quando é o caso, sem terem conhecido o martírio com que sonhavam. São corpos cuspidos na morte. Ou se tornam réus, e perdem a posição de poder que julgavam possuir. Mostram-se os criminosos que se forçaram a ser. Porque, precisamente, não foram radicais. Reinaram na superfície.

O terrorismo mais próximo de nós, esses dias — e não só no território europeu e norte-americano — tem sido o da “guerra santa”. Logo se pensa: os muçulmanos, os árabes. Quem assim condena é tão idiota da superficialidade quanto os terroristas que espalham mortes aleatórias: erra o alvo. A religião islâmica é pacífica, não se presta ao terror. E o jihadismo não é uma variante ou seita islâmica. Longe disso. — Imagino já os conquistados pelo Terror enojados com essas distinções, que nas suas mentes maniqueístas só podem ser condescendência com o inimigo. Está bem, não insisto. Vão ler o Corão. De quebra, a Torah e os Evangelhos. Lanço o desafio, mas adivinho o resultado: não vão ler nada, e continuarão interpretando mal a História. Esses sim, os poços de ódio desfocado, são os que o Terror conseguiu conquistar. Perderam a amorosidade. Andam desencontrados da vida. São mestres da suspeita e da condenação. Olho para eles com raiva. Devia olhar com pena. Mas não sei.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)