Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Polêmica também é conversa

A juventude de Santo Agostinho permitiu-lhe ajustar contas com o tempo.

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Agostinho foi o primeiro filósofo-teólogo a pensar em público em primeira pessoa. No seu livro “Confissões”, passou sua vida em revista e a mostrou, sem pudor, ao mundo. Sua vida, dom de Deus. Nada mais justo do que prestar conta dela. Para que nós, visitando-a, reconheçamos quem sabe nela o tempo que nos foi dado a viver. E aprendamos que é possível navegar entre os opostos. Santo Agostinho nos ensinou a intimidade. Que a filosofia, mesmo a teologia!, servem para sondar a intimidade. E mostrá-la.

Santo Agostinho teve uma juventude que, na época, chamava-se “dissipada”. Bebeu, comeu, jogou, conheceu mulheres. Teve um filho, que não reconheceu. Salvo por essa última e indesculpável atitude, viveu na plenitude do que significa ser jovem. Na época, isso foi julgado uma perda de vida. Como se só tivesse começado a viver de verdade, contando pontos, a partir da sua conversão adulta. Quando ficou habitado pela potência da santidade. Mas não foi. A juventude de Santo Agostinho foi matéria de pensamento. Permitiu-lhe ajustar contas com o tempo. E confessar que viveu.

Um dos sentidos dessa avaliação foi compreender o que significou, para ele, ter sido um jovem maniqueu. Agostinho foi, na juventude, maniqueísta, essa coisa ainda há pouco feia entre nós, que precisava ser evitada a todo custo por quem tivesse um razoável amor à verdade. Já não mais. Com a certeza de que são sempre “eles” os errados, nós, ao nos “opormos ao erro”, nos banhamos na boa luz. E não queremos conversa, porque essa gente não quer mesmo conversar. É um povo dogmático, que não enxerga a evidência de que isso... e também aquilo... Gente cega pela ideologia, ou pelos interesses. Não se importa com a verdade. E mente. E mente. E mente. Assim pensam “os bons”.

A Igreja ensina que devemos abominar o pecado, mas amar o pecador, nosso igual. Hoje, odiamos sobretudo o pecador. Porque ele não abre mão do Mal. É, portanto, mau. E resulta um mundo partido ao meio, congelado entre bons e maus. O problema sério é que cada lado tem certeza do Mal do outro. No fim das contas, dependendo de como se olhe, somos todos maus. Ninguém escapa. O Bem desertou o mundo. Deus morreu. Os que ainda procuram, e pesam argumentos e atitudes, os ponderados (é o que são os que pesam e procuram) são considerados os piores. Não tomam partido sem condições. Mas têm de tomar! Porque não é mais possível ser humildemente bom e mau. Esses, os filósofos, poetas, místicos, artistas, só podem então estar a serviço das sombras. Vivemos um tempo em que, em terra de cego, quem tem a felicidade de ainda ter um olho não é rei. É um monstro. Porque ser cego é bom. Piores cegos são os que desejam ver. Os obcecados da luz.

Santo Agostinho foi maniqueu. Julgou e condenou, tomou partido sem pensar que, no fim das contas, tudo é bom e mau, em medidas. Mas lá um dia viu isto. E polemizou com o maniqueísmo. Lutou consigo. Confessou-se. Revirou sua alma ao avesso. E encontrou nela o mal que consiste em julgar-se bom, sem contrastes. Fez-se melhor quando se descobriu pior. Quando viu o mal em sua alma. E passou a vida procurando isso: sua alma. Alguém lhe perguntou: o que você busca? E ele: Deus e a minha alma. E o outro, surpreso com tão pouca ambição: só? Só, disse ele. E já era demais. Procurava sua alma porque havia nela mal. E havia Deus. Se encontrasse Deus na sua alma, aprenderia a lidar com o mal que lá também havia. Deus e o diabo na alma de Agostinho. Polêmicos, porque um não cabe no outro. Em diálogo, porque um não aparece sem o outro. E, aqui fora, Agostinho que se confessa. Pode haver atitude mais bela, mais cheia da absoluta plenitude da vida? Esse é o verdadeiro bom combate.

Faz isso 15 séculos. É tempo! Quinze séculos depois, precisamos desesperadamente dessa força da polêmica que conversa e confessa. Há tempo? Também o Tempo caducou? Junto com a verdade e com Deus? Só nos resta a batalha final, a das Trevas e da Luz, que São João nos mostrou no último livro da Bíblia, o do fim dos tempos?

Reabramos o primeiro livro, o do começo de tudo: “...a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Deus disse: haja luz, e houve luz”.

Está difícil conversar. Aquela fala risonha de fim de tarde, quando o dia vai acabar, e às vezes foi bom. Está entrando areia na maciez da nossa tão falada cordialidade. Estamos cheios de pontas, arestosos. Com facilidade nos deixamos arrastar para a polêmica feroz. Na política. Na religião. Polêmicas ácidas, zangadas. No entanto, polêmicas podem ser exemplos da difícil arte de conversar. Santo Agostinho foi um grande polemista. Isso não o impediu de pensar como quem se confessa, com total intimidade. Ele parece que tem uma ou duas coisas, então, para nos ensinar.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)