Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

A vontade de injustiça

A Constituição prevê o remédio. Mas exige a doença. Um crime. Que foi fabricado

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Há dias em que a lentidão da verdade, a explosão da poesia, o silêncio cheio de anjos dos místicos, a música que marca o nosso tempo de viver — há dias em que esses delicados gestos de esperança e paz se entristecem com o que andamos fazendo com a vida. Ficamos então autorizados à ira. Estamos vivendo dias assim. Os de dizer outras verdades, as da urgência do instante. As que devem ser ditas com raiva. As que, se caladas, porão névoas sobre a verdade, a beleza, a esperança e a paz. Dar nomes aos bois.

Vivemos hoje, aqui, uma extrema tensão. A verdade se espalha, todos a têm, ninguém a detém. Mas que isso não conduza à apatia do julgamento, ao sofrimento da verdade. É preciso, no vendaval, manter a lucidez. Conservar claro o pensamento nos tempos da grande ira pede atenção aos sinais. E há muitos disputando o nosso olhar.

Há a maldita corrupção. Espalha-se de cima a baixo da sociedade e do poder. Muito mais em cima do que embaixo, é verdade. Onde há mais poder mais ela está em casa. É coisa antiga no nosso país. O padre Vieira fez sermão sobre ela. Machado de Assis escreveu sobre suas metástases. Rui Barbosa a pôs sob julgamento em grandes discursos. A corrupção come sobretudo o Estado, que é onde mora o poder. Rouba dos pequenos. E é triste.

Desde a Constituição de 1988 existe um Ministério Público para defender o povo. Constituiu-se com promotores jovens, talvez idealistas. Há uns dez, 12 anos, a Polícia Federal age sem a coação do Executivo a que pertence, mas a que não se submete. E o aparelho judiciário vem se recuperando de uma corrupção atávica e, parece, trabalhando bem. Estou entre os ingênuos que têm confiança no Supremo Tribunal Federal.

Bom momento para lavar as podridões agarradas nas nossas raízes, que apodrecem. Tem sido feito. Com boa direção, intenção boa, excessos grandes. Os “homens providenciais” cometem excessos. São perigosos. Cegam-se pelas próprias convicções. Têm tantas certezas que se esparramam em prisões preventivas e conduções coercitivas espetacularizadas para fazerem efeito de verdade. Nem fecham as torneiras dos vazamentos seletivos estratégicos. Alguns contêm matéria verdadeira, mas vêm à luz na contramão do processo. Os outros fazem o mal que a mentira sempre faz, atingem pessoas e vidas, e lá ficam, doendo. Apesar disso, é preciso esperar que a justiça se faça. Há condições para isso. Há massas inumeráveis de informações. E os excessos, quando aparecem e são obscenos, têm sido corrigidos na instância suprema.

Mas há também a justiça dos políticos. A Câmara primeiro, o Senado depois, foram chamados, pela Constituição, a julgar a presidente da República. É talvez o trabalho mais sério que lhes incumbe entre todas as suas atribuições. E o mais violento. Interromper o mandato de alguém que o povo elegeu é coisa que deveria ser feita quase com delicadeza. É pesada demais. E a chamada classe política, pela sua maioria muito eventual, escolheu ser violenta e não ser séria. Exerceu a vontade de injustiça.

A Constituição admite o impeachment em condições excepcionalíssimas, como devia ser. Nos casos extremos, é por aí que a democracia pode se salvar. Quando usado com ódio, o remédio é um veneno mortal. A democracia morre dele. E é o que estamos acompanhando. Já escrevi que o processo do impeachment resultou do projeto de derrubada de uma presidente cuja eleição os derrotados não conseguiram engolir. Projeto antes de haver objeto. E deu no que deu. Era preciso haver crime bem identificado? Usem-se as tais pedaladas! Ponham o tribunal de contas para tomar decisões retroativas sobre elas. Extraiam-se crimes de atos que antes não o eram. E pronto. O principal está feito. Convencione-se que há crime e façam-se todas as mímicas de um julgamento verdadeiro. Assegure-se o direito à defesa, para que não fique clara demais a simulação. E vamos fazer política. Porque julgamento mesmo não há. Com crime artificialmente fabricado e ouvidos moucos à demonstração desse arbítrio, falar de julgamento é agredir a nossa inteligência e o nosso nojo. Mas é o que lá está sendo simulado. Um julgamento imparcial. Pois o Supremo não o convalida? (O Supremo deu o rito. Está proibido de se manifestar sobre fatos e provas.) A Constituição não o prevê? A Constituição prevê o remédio. Mas exige a doença. Um crime. Que foi fabricado. A partir desse momento, o processo, mesmo seguindo os ritos, tornou-se inconstitucional. A não ser que os ritos prevaleçam sobre os fatos e as provas. Alguém acha que sim?

No fim das contas teremos, provavelmente, uma presidente derrubada do seu mandato. Quem não gostar da palavra golpe não a use. Ninguém obriga. Não é o nome que faz a coisa. Mas a coisa é feia. Não há nela verdade, beleza, harmonia ou justiça. Há violência. E toda violência é triste.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)