O Direito é um princípio civilizacional. Sem ele, a guerra de todos contra todos, de que nos falou Thomas Hobbes, seria a lei. Como a de Darwin, a da sobrevivência dos mais aptos. Às vezes se diz: “a lei da selva”. A do poder do mais forte. Não haveria, de fato, sociedade. O Direito regula a vida no que é regulável. Estabelece um princípio de paz civil. Disciplina as divergências. Não é preciso resolver dissensos no tapa ou no tiro. Há juízes, as partes falam, há provas a serem apresentadas. Sentenças. Recursos. Pode-se dizer que o jugo da lei é a pior das formas de compor interesses. Mas é melhor do que todas as demais. A guerra, por exemplo. O olho por olho. Mais vale uma lei ruim do que a barbárie.
A primeira instituição dos direitos universais, para toda a Humanidade, na cultura que reconhecemos como nossa, foi a declaração das bem-aventuranças. Seu jurista foi Jesus, o Nazareno. Proclamou o código da mansidão. Estabeleceu como crimes atentar contra os pequeninos, os pobres, os mansos, os aflitos. Os que têm fome e sede de justiça. Os misericordiosos, os puros de coração. Os que promovem a paz. Os perseguidos por causa da justiça. E fixou os direitos: o reino dos céus, a herança da terra. O consolo. A saciedade da justiça. A misericórdia. O direito de ver a Deus. O de sermos chamados filhos de Deus. Uma linda lei da ternura do Pai. Revoga as disposições em contrário: a crueldade, a soberba, a autoindulgência, o desprezo pelos pobres, a violência contra todas as pessoas. A humilhação da vida. Não prevê penas. A autoevidência dessa lei é o amor.
Não temos sabido, nos dois mil anos que transcorreram desde aquela manhã, reconhecer muito bem a autoaplicabilidade dessa Constituição da nossa comum Humanidade. Precisamos de leis infraconstitucionais, que põem névoas e cegueiras no que devia ser uma civilização de paz. Nessas leis ocorre de serem crimes maiores os que atentam contra as coisas do que contra as pessoas. Mais abundantes as que regulam a propriedade do que as que protegem a vida. Leis houve que consideraram natural serem homens escravos de outros homens. Porque a natureza que institui a prevalência do mais forte não está suprimida: está escondida por baixo da civilização. O direito mexe nisso. Mas há direitos e direitos. Já se disse demais, virou lugar-comum, que é mais fácil ir para a cadeia quem rouba para comer do que quem enriquece roubando. É lugar-comum porque é verdadeiro. E é bom repeti-lo para nos lembrarmos de que o crime é a fome de quem a tem, mais do que a galinha de quem a perde. E não nos esquecermos de que diariamente violamos o código de Jesus. Não alimentamos os pequeninos, os que têm fome de pão e de justiça, enquanto nos empanturramos do supérfluo e do poder.
Hoje conhecemos no Brasil um ataque bem-vindo aos crimes gordos, às corrupções que tiram do que é comum para o entesouramento nas contas protegidas pelo segredo dos maus. Não fujo da palavra: os maus. Porque há maus. Os violadores universais. Os estupradores dos dinheiros públicos, que depois faltam na educação das crianças e na vida digna dos velhos. Na saúde dos doentes e na segurança dos fracos. Na alegria de andar por ruas pacíficas. Na fome dos que a têm e na terra, no abrigo sob um teto dos que não os têm. Nas invenções do espírito, as ciências, as técnicas, as artes. Os dinheiros roubados pelos gordos da corrupção quebram os ossos frágeis da vida. É preciso dizer, então: bem-aventurados os que promovem a paz, restabelecem a justiça, punem os que vivem como se o mundo fosse seu. A lei que pune é necessária quando não conseguimos enxergar a obviedade dessa outra, cujo único artigo é o amor. O amor, simplesmente, sem distinções que discriminem nem sanções que reprimam.
Nesse direito que busca a justiça, quando o amor não basta, está implicada uma forma da verdade. É a verdade que se procura (porque não raro se esconde nas próprias dobras da lei). A verdade antes de tudo. As provas. O estabelecimento, claro até a evidência da luz solar, das culpas. Só depois os julgamentos e as penas. Com o cuidado de quem sabe que toca vidas e reputações. Nessas horas, a injustiça dos que simulam julgar é o crime maior. É terrível querer ser injusto. Mas temos visto essa vontade de injustiça diariamente se revelar. Por parte de quem investiga como se cumprisse um programa político. Por parte de quem julga com sangue nos olhos.
É preciso escrever sobre a vontade de injustiça, o golpe contra a verdade. É coisa que corta o fôlego e dói no coração. Temos visto demais esse golpe, que esfrangalha os ossos, derrama os olhos em sangue e lágrimas. Falseia as consciências.
Ainda não será hoje. Precisamos de um tempo para respirar e mergulhar. E encontrar uma brecha para sairmos limpos da água suja. Na próxima semana, então. Prometido.