Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Ecos

Um elogio à música 'Mortal loucura', de Zé Miguel Wisnik (18/06/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo. | Ouça aqui a música.

Andei reouvindo ‘‘Mortal loucura”, lindíssima canção de Zé Miguel Wisnik sobre poema de Gregório de Matos. Wisnik, os leitores dessa coluna conhecem bem. Ele a escreveu por uns cinco anos. E eu a li por uns cinco anos. Gregório de Matos foi um poeta português nascido no Brasil no século XVII. Barroco, cheio de ornamentos, e violento. Atacou os costumes hipócritas do seu tempo com ironia e sarcasmo. Passeou pela pornografia. Nesses nossos tempos de moral corrupta e de apropriação dos dinheiros públicos, tempos de política pornográfica, sua lâmina viria muito a calhar. Fazem-nos falta hoje, na política, uns poetas pornográficos. Para levantar o nível.

Mas o soneto “Mortal loucura’’ é dos líricos. Metafísico, reflexivo. Bom de ler, excelente poesia. E tem uma qualidade especial: o eco. O fim de cada verso ecoa a última palavra. Sem os quatorze ecos o poema ficaria sem pé nem cabeça. É o eco que dá sentido. E no final da leitura sai um lindo soneto, dos que arrepiam as peles sensíveis às palavras. Cantado por Wisnik, que se acompanha ao piano, é um deslumbramento. Há quatro dias não me sai da cabeça. Ainda há pouco, quando vim escrever esta coluna, me deu bom dia. Agora está lá no fundo, amaciando o som martelado das teclas que esmurro com um dedo só. Está lá, aqui, fazendo eco.

É assim: há um verso. Vem o verso e parece que chegou ao fim. Mas não. Na sua ponta extrema, o eco soa — e o verso se completa, e ecoa, bonito. Querem ver? “Quem do mundo a total loucura...cura/ À vontade de Deus sagrada...agrada’’. E o último: “Será o fim dessa jornada...nada’’. Ouvi de novo enquanto catava esses exemplos. Deem um Google nela. “Wisnik mortal loucura’’. E escolham a versão cantada por ele. Depois me agradeçam.

Como filósofos veem coisas extraordinárias nas mais triviais, fiquei pensando sobre os ecos. No poema, é na hora em que eles aparecem que abrimos o sorriso bobo de quem viu os anjos. A vida fica de repente emocionada. É bom. Um eco, que parece uma repetição do que já sabemos, pode ser a chave de uma revelação. Está bem, uma pequena revelação. Mas as revelações não se medem pelo tamanho. Importam por revelarem — não nos cairiam mal, agora, ecos do nível de humilhação a que deixamos cair a vida. Humilhação da fome. Das navegações assustadas pelas noites do Mediterrâneo. Das matanças sem nenhum sentido. Da pobreza desesperada. Que a humilhação ecoasse num poema seria coisa das mais necessárias nessa guerra dos maltrapilhos da esperança com os empanturrados do poder.

Mas o eco também pode ser uma maldição. No muito antigamente das coisas que se passavam entre os imortais e os humanos, havia uma ninfa. Chamava-se Eco. Adorava falar e queria ter sempre a última palavra. Um dia, Hera, mulher de Zeus, o rei dos deuses, desconfiou de que a ninfa andava se divertindo com o deus. Andava mesmo. E, para evitar o flagrante, teve uma longa conversa-fiada com a deusa, tentando enredá-la nas palavras. Hera percebeu e a condenou a nunca mais começar uma fala. Daí em diante, só falaria em último lugar, para repetir a palavra final de quem a tivesse antecedido. Era um modo de dizer a última palavra sem ter a última palavra — como andamos cercados de ecos ruins nesses dias de revelações estarrecedoras. Todo mundo repetindo todo mundo. Sempre a mesma cantilena. Não fiz nada errado. Errado. Nada foi ilegal. Ilegal. Cada um fala ecoando os desmentidos despudorados dos outros. Uma cacofonia de inocentes. Podiam gravar um jogral com essas palavras esvaziadas de verdade e nos poupar de ouvir seus ecos sempre de novo. Seríamos mais felizes.

Então: há bons e maus ecos, como há bons e maus tudo. E os outros, os que só passam adiante, sem refletirem muito, as violências, humilhações e falsidades, como se fossem apenas fatos. Ecoam, repetem, não pensam. Boateiros da vida. O eco bom, o da poesia, serviria para acordar esses sonâmbulos. Seria excelente que quando passassem pelos pobres sem esperança e pelos políticos de carteiras gordas (há os honrados; acabam embolados com os outros, e é injusto) pudessem se espantar com os ecos já ouvidos e abrirem a mente e os olhos. Por conta própria. Talvez levassem um susto. A denúncia da poesia quem sabe os desconcertasse. Ela serve para isso, para o desconcerto da vida. E depois, passado o primeiro susto, serve para ir lá, passar mãos carinhosas nas feridas do espanto. E deixar a vida só um pouquinho melhor.

Acredito nisso. Gregório de Matos acreditava. Ou não teria escrito esse soneto. Zé Miguel Wisnik acredita. Ou não teria posto nele música tão delicada. Acredito nisso com o meu corpo, que se comove. Com a minha alma, que conhece uma súbita alegria. Deve ser mesmo verdade. A poesia pode salvar a vida. Deixar essa certeza ir ecoando, muito, muito longamente, pode ser uma esperança de salvação..ação...ação...ação.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)