Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Na pinta da meia-noite

O mistério incomoda, dá náuseas, mas é no oculto que se prepara o extraordinário (11/06/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

“O senhor, de quem é o oráculo em Delfos, nem diz nem oculta, mas dá sinais.” — Esse é um dos fragmentos de Heráclito, que nos acena do remoto século VI a. C. Texto antiquíssimo, leitura nova. Condenados por Aristóteles, os pré-socráticos só ressuscitaram no século XIX. Foi como se de repente saltassem fontes puras da alegria de pensar. Estão novinhos em folha, esses ditos. Precisamos dessa água fresca. Heráclito tem 126 copos preciosos. Esse é um dos mais cristalinos.

Nele o que pode estar dito é: o deus (“o senhor, de quem é o oráculo em Delfos,” é Apolo) não diz nada que nos dispense de trabalhar: nem sim, nem não. Mas nos põe a caminho: dá sinais. E como a verdade se esconde (mas também aparece, a quem queira olhar), ele “assinala o retraimento”. É como se dissesse: não dou nada a quem não se exponha. Procurem. A verdade se dá a quem não desiste dela na esquina da primeira aparência. Não é uma pedra de gelo imóvel e à espera. “...É um fogo sempre vivo, que se acende em medidas e se apaga em medidas.” É ainda Heráclito, e agora diz: o mundo se mostra e se esconde, acende e apaga seu farol. Mostra-se como é e também engana. Enganar-se faz parte de estar a caminho. Estar no caminho é bom.

Houve tempo — tempo demais — em que nossa cultura ocidental esteve obcecada pela luz. Só o bem dito, o claro, o farol sempre aceso nos traziam paz. A da verdade, avaramente guardada, defendida contra os “infiéis”. Se preciso, com violência. Pobre verdade. Ela que pretendia ser o comum a todos, entesourada como propriedade particular. Queria estar à mão do pensamento, mas a encerramos no silêncio do dogma. Ah, se já tivéssemos aprendido a ouvir Heráclito! — Mas ele está aí. Assinala, no retraimento, outro mundo possível, o do comum. Não diz o que é: nem afirma nem nega. Mas dá sinais. Precisamos deixar de ser orgulhosamente analfabetos para o mais originário de nós. Aprender a ouvir.

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Nietzsche teve um sonho. O demônio noturno se insinuava no seu sono e lhe perguntava se ele queria tudo de novo, todo o passado, com bem e mal, tudo na mistura do tempo infinito. E ele disse Sim. É fácil querer o futuro. Difícil é desejar o passado, que, diz-se, acabou. No passado, por ter vivido e assinalado bem e mal, acendido e apagado o fogo sempre vivo, fulgura a santidade da vida. A vida inteira. A que foi e a que poderia ter sido. A realidade e a possibilidade. Querê-lo de novo é dar-lhe a oportunidade de ressurgimento. De antiesclerose do presente.

O demônio noturno... Nietzsche não disse, mas sempre penso na pinta da meia-noite, a hora mais extraordinária. Nesse instante exato todos os tempos estão reunidos. Um dia está completo, outro dia está em começo. O fim de um é exatamente o início do outro. Um segundo antes ainda se distinguiam hoje e amanhã. Um segundo depois, ontem e hoje. Na pinta da meia-noite, ontem, hoje e amanhã fulguram num instante que assinala a própria eternidade. Tudo concentrado. Um tempo só. É nele que aprendemos que o passado se enovela com o futuro, no presente, e tudo é um. A pinta da meia-noite é o senhor que não afirma nem nega: nela estão todos os sinais. Precisamos jogar fora os relógios e os calendários para escutarmos o que diz “a profunda meia-noite”, escreveu ainda Nietzsche. Foi num poema. Os poetas sabem o tempo.

Há tanto de oculto... O misterioso nos assusta. Contra ele inventamos os holofotes. E os espetáculos, que afirmam e negam, mas já não dão sinais. É pagar, sentar e anestesiar-se. O mistério incomoda, dá náuseas. Mas é no oculto que se prepara o extraordinário. O fora da ordem. Sem seus sinais não será reconhecido. A quem não o espera, não ocorre. E como estamos precisados do extraordinário! Uma vida banalizada no consumo de si merece o susto do que não cabe na feira. Do que não se compra. Do que se experimenta quando se aprende a nem ocultar nem mostrar — mas a ler sinais. Quando não se mata o passado e, com isso, se perde o futuro — junto com o sentido do presente. Quando se vive na pinta da meia-noite, que reúne e separa. Pois são as mesmas as “portas de dia e noite”, disse Parmênides, o outro grande pré-socrático. As mesmas. Uma não há sem a outra. Amanhecer é um trabalho noturno.

Não entendemos isso, ficou difícil demais para nossas mentes de computador. Sim/não. Zero/um. E só. Nada no meio, acima, abaixo, ao lado, entre. — Alegra-me a ideia de que, sendo Heráclito e Parmênides tão antigos e tão novos, estejam tanto no nosso passado quanto no nosso futuro. O já dito, o ainda a pensar. E nós habitando a pinta da meia-noite. Onde passado e futuro se contraem. Nem ocultam nem mostram, mas dão sinais. Abramos os olhos para a escuridão da meia-noite. Nela está o tempo disruptivo do instante, nela um outro tempo é possível. E um outro mundo. Certamente melhor.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)