Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Sobre as Histórias

Olho para o presente e não consigo evitar a avalanche de tristeza (28/05/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Nietzsche nos apresentou três tipos de História. E nos pediu que nos puséssemos, em relação a elas, na posição da vida. A boa História é a que aumenta a potência da vida. O critério é esse. Estamos aceitando que a vida seja humilhada pelos senhores do poder e da guerra. E tiramos o corpo fora, porque o mundo de hoje é isso mesmo. Nietzsche diria: ponham o corpo dentro! A História está nele e nas suas dores. Não temam a dor.

Três Histórias. À primeira chamou monumental. A dos grandes homens, dos grandes feitos, das grandes batalhas. Tudo nos altos cumes, lá em cima, sobre as nossas cabeças. A História é uma linha de tempo que liga cume a cume. E nós, no vale, acreditando que o que foi grande, por isso mesmo retornará. Cuidado com os cumes! São frios. Há pouco ar. Poucas pessoas cabem neles. Cuidado com os retornos do passado. São farsas.

A segunda História é a conservadora. Pensa-se assim: se o que aconteceu no passado é responsável por nós, veneremos o passado. Ele é nosso pai. É o único tempo vivo. Traz em si a verdade. Respeito e veneração lhe são devidos. Nele nos conheceremos. E aí somos tomados por uma fúria de colecionador. De antiquários. Não deixamos vir o futuro, o tempo grávido do que é novo. E, sem futuro, ficamos tristes. Envelhecemos, de tanto passado e tão grande veneração. A humanidade velha está pronta para morrer. Atenção às adorações! A vida borbulha em nós, salta por cima das nossas renúncias tristes. Mas é impaciente. Não tem condescendência com os coveiros de futuros.

E há a História crítica. Essa conhece os sofrimentos do presente e deseja o futuro. Quer trabalhar sobre o nosso tempo, contra ele, com o coração aos saltos pela esperança de um mundo que há de vir. É fácil, entre as três Histórias, escolher rapidamente esta. Há nela desejo, é toda risonha e promissora. É verdade. Mas, de novo, atenção! Pois a condição para haver futuro é ser injusto — é como Nietzsche diz — com o passado. Ele guarda belezas, é delicado, mas é também habitado pelos poderes que julgam, condenam e humilham a vida. Esses devem ser julgados e condenados por sua vez. Ou o futuro não se apresentará. Repetirá o que já foi. Mas, agora, como farsa. Mas cuidado: essas forças, esses acontecimentos, são reais. Ainda habitam o passado. São parte da sua carne. Nietzsche nos diz para violá-los, reescrevê-los com o sangue do presente. O futuro virá da injustiça redentora da vida. Marx pôs aí a Revolução. Revirar tudo, arrancar raízes. O futuro virá se mexermos no nosso privilegiado repouso. Ou na dor insuportável.

A atenção toda é para não sermos levianos com o passado. Ele existe mesmo. Já esteve presente, um dia foi vida. Passou, mas a vida ainda está nele. De olhos fechados, como quem dorme. Cuidado com a ilusão de que o passado dorme! Ele está imaginando o futuro, ajeitando os seus caminhos. O futuro do passado somos nós. Ao julgá-lo tenhamos mãos brandas. Estaremos cutucando nossos pais. E nossas memórias. Não podemos viver sem memórias. Ou o tempo, que aconteceu grande, voltará pequeno, porque o esquecemos. Voltará como farsa. Nietzsche escreveu que felizes são os bois, que não têm memória. E que a humanidade sofre porque não sabe esquecer. Cuidado com quem deseja esquecer. Os bois não são felizes. Os bois são apenas bois.

Nossa humanidade está suspensa da linha tênue, tão frágil, com que lidamos com o nosso passado. Tecitura difícil! Convém deixarmos que alguns fios se esgarcem. Que uns buracos apareçam. Não os remendemos. Um passado remendado é um mau passado. O tempo envelhece. E é bom ser amoroso com o que soube envelhecer.

Nossa humanidade também se pendura no nosso desejo de futuro. Não basta esperá-lo. Se não for desejado, com paixão, não virá. O passado, velhinho, acontecerá de novo. Sem engravidarmos do futuro ele não poderá nascer. O futuro nasce. Vem um tempo diferente, como é diferente tudo que nasce. E não cai das nuvens, como chuva atemporal. A gravidez é como se relacionam, cuidadosamente, passado e futuro. É preciso sabermos engravidar.

Olho para o presente do mundo, para o presente do Brasil, e não consigo evitar a avalanche de tristeza. Não estamos sabendo engravidar. Nós, que devíamos ser ponte e passagem, endurecemos os nossos corações. Não abrimos os nossos corpos. Tudo se repete, e é farsa ruim. Estamos abortando o futuro. Ai dos que preferem abortar o futuro!

É de Marx a ideia de que a História acontece duas vezes — uma como tragédia, outra como farsa. Como se dissesse: trabalhem a sério pelo tempo, e tenham grandes esperanças. Assim talvez o futuro venha melhor, pelas nossas mãos. E seja grande. Sem farsas. O mundo está, hoje, num desses momentos, entre tragédia e farsa. O Brasil, pelo menos, com certeza está.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)