Uma das marcas mais reconhecidas da cultura pós-moderna é o seu anti-humanismo. Individualista ao extremo, o pós-moderno é um modo de estar no mundo que não assimila a noção de valores humanos transcendentes à existência corrida de cada dia. O homem, como valor, está cassado. O humanismo se aposentou. Ficou excêntrico, fora do eixo. Quem percebe a incompletude desse modo achatado de ser fica procurando coisas perdidas. As pessoas ficaram no ar, desautorizadas de fazerem uma experiência de si mesmas que ainda mereça o nome de humanismo. Uma experiência de habitação do homem na Terra. Na terra, onde tudo começou.
Há uma antiga fábula sobre a disputa dos deuses quanto ao nome que dariam ao homem. Que coisa é um homem? Os diversos deuses e deusas pretendiam nomeá-lo, cada um segundo suas próprias características essenciais. A arte do guerreiro. A sabedoria que conhece. O engenho que produz. A alegria que canta. O corpo que deseja. O poder que domina. A linguagem que comunica. Não houve acordo, como era o mais frequente na mesa dos deuses, que comiam, bebiam e brigavam enquanto iam deliberando sobre as coisas do mundo sublunar. E Zeus, o rei dos deuses, decidiu quase salomonicamente: a coisa nova se chamaria, provisoriamente, homem, pois viera da terra, humus.
Outra narrativa, que conhecemos bem, nos dá conta da fabricação do nosso ancestral diretamente por Deus, o oleiro do homem. Deus moldou a forma original da sua mais alta criação. Às outras tinha-lhe bastado dizer “Seja!” Ao homem, não. Deus o quis à sua semelhança. Moldou-o para ser a mais perfeita criatura. A semelhança não estava no corpo, de que Deus não precisa. Estava em que Deus lhe soprou pelas narinas a alma. E o homem, animado pelo divino, viveu.
Barro e nome. Barro e sopro. Um elemento da natureza inerte, outro de vida e sentido. Entre essas duas metades de DNA do homem e da mulher (“e homem e mulher os criou”, diz a outra narrativa do Genesis) definiu-se, provisoriamente, a humanidade. Provisoriamente: os deuses ainda podiam fechar acordo sobre um nome que não lembrasse apenas a origem barrenta; e o primeiro casal, expulso do Jardim, precisou inventar nomes de cidades, ferramentas, armas e tendas. Seu nome próprio estava em suspenso. Precisava merecê-lo. E assim foi. Por um lado como pelo outro da nossa ancestralidade greco-latina e judaica, andamos procurando responder a essa pergunta, que Drummond formulou no bronze do seu verso: “Mas que coisa é homem...?”. As buscas constituíram os diversos humanismos de que se fez a nossa história. Seleciono apenas algumas estações maiores dessa viagem.
Houve um humanismo grego. O que propôs a educação, a formação pela cultura, para criar o homem e afastar o “bárbaro”. Uma Paideia. Herdamos dela. Como já havíamos herdado do humanismo judaico do Livro: sempre dois lendo, um diante do outro, para que da divergência florescesse a interpretação, e nela a continuidade da verdade de Deus. Também aprendemos do humanismo romano do cidadão, do homem livre pela lei, e sujeito a ela para ser livre. Uma bonita ideia sobre o que determina um homem a ser. Formulamos, cristãmente, a noção universal de humanidade, e a distribuímos pelos muitos cantos da terra. Um humanismo universalista, entusiasmante tentativa de entender o que, afinal, é homem, se Deus a todos criou, sem distinção. O humanismo renascentista acabou afastando o homem de Deus, e aproximando-o da outra grande criatura, a natureza. Esse humanismo naturalista nos encheu de arte e beleza, e prenunciou a época moderna, a da Razão soberana. A do homem público, súdito e senhor da Razão. O homem pós-moderno pode ser o antagonista deste. Abalada a Razão pela eficácia do cálculo que dispensa a verdade, surge o indivíduo consumidor, ávido de desejos e prazeres. Homem unidimensional. Não mais barro e sopro, terra e nome. Já não cultura ou interpretação da Palavra. Nada de cidadão e Lei. Nem criatura e Criador. Ou o parceiro da Natureza. Ou o servo e senhor da razão, atormentado pela verdade. O pós-moderno homem unidimensional rompeu todos esses vínculos. Largou amarras. Queria ficar livre: ficou à deriva.
Um humanismo, hoje, poderia funcionar como um contraveneno. Resgatar os jogados fora. Trazer de volta, no próprio momento da sua anunciada extinção, o corpo dos deuses, a Palavra e a Criação, a Lei e a liberdade, o gosto da Natureza. E começar de novo. Ainda não sabemos que coisa é um homem. Corremos o risco de nunca o saber, nesse mundo tornado global, que sofre de doença autoimune, e se devora porque não se reconhece.
O humanismo não seria, hoje, um saudosismo passadista. Nessa hora crepuscular, poderia ser um projeto revolucionário. E não tem mais tempo: é para já.