Em tempos de opinião, a verdade não é objeto de desejo. Nem de consumo. E por isso não tem interesse. É coisa de filósofo. — Digo que não. É coisa profundamente agarrada no corpo da vida. Sacode-a e a acaricia. Mas, quando a vida fica com pressa, a verdade é sacudida do seu dorso. Porque a verdade é lenta.
Mas é uma enorme paixão. Quando o amigo de Sócrates ouviu de Apolo que ele, Sócrates, era o mais sábio dos gregos, e Sócrates tudo que sabia era que nada sabia, a paixão da verdade começou. Sócrates, o ignorante, precisou perguntar aos que se diziam sábios onde morava a sua sabedoria. E tornar-se sábio como eles. Descobriu que eles também eram ignorantes, apenas se desconheciam. E gostou da própria ignorância. Quem não for ignorante, sabendo que o é, jamais alcançará a sabedoria, pensou. E usou sua ignorância para procurar o que não tinha. Sua vida ficou encantada pela paixão da verdade. Sua morte também. Morreu ainda perguntando. E em serena paz.
Porque é preciso dizer logo: essa paixão exige serenidade. Ou se corre o risco de desejar possuí-la em definitivo, construir sistemas e bandeiras. Os que têm certeza da verdade, e já não procuram, tendem a não ver com bons olhos que os outros insistam em continuar a buscá-la. Pensam que a verdade, uma vez encontrada, precisa ser imposta à vida dos ignorantes. Mas essa não é mais a arte dos filósofos. É o arbítrio dos tiranos. Sem a serenidade, a paixão é só poder.
Houve na Antiguidade uma escola “cética”. Muito mal a tratamos até hoje. Dizemos: os céticos afirmavam que nada podia ser conhecido com certeza; ora, esse precisa ser um conhecimento com certeza, ou será falso; logo, os céticos acreditavam que pelo menos uma coisa pode-se conhecer com certeza. E pronto. Podemos passar adiante e nos admirarmos com os sistemas de pensamento em que a verdade se congelou, admirar suas magníficas arquiteturas. Depois de termos arrasado a bobagem cética. Vamos cheios de sabedoria. — Não vamos. Os céticos tinham nos oferecido generosamente um antídoto, e nós nem o vimos. Nem tomamos.
A palavra grega da qual se extraiu essa outra, “cético”, é skepsis, e quer dizer procura. É, afinal, a atitude de Sócrates, que os arquitetos de sistemas alegremente traíram. O que os céticos queriam ensinar era só que quando o trabalho da procura cessa a paixão da verdade acaba. Acomodamo-nos num bom sistema, e descansamos da fadiga das buscas. Ficamos felizes com o que temos. Os céticos diziam que não: quando paramos, ficamos infelizes e preparados para uma morte triste. Viver exige pormo-nos permanentemente a caminho. Felicidade é isso.
Os tiranos, profissionais e amadores, têm a volúpia da posse da verdade. Encontraram-na, vão defendê-la até a morte, a morte dos outros. Os tiranos são destituídos de amor. Os filósofos (pouca gente sabe disso) são, ao contrário, os mais humildes dos mortais. São ignorantes. E felizes com isso. A ignorância é seu passaporte para viagens e paisagens. Os tiranos não viajam. Têm porto. Ancoraram. Os filósofos continuam apaixonados. E serenos. Sim, serenos. Pois sabem que outros também procuram, e a busca segue caminhos imprevisíveis. E bons. Não se podem fechar caminhos porque não são os por onde andamos. Em relação aos que honestamente procuram em outros lugares, os filósofos sabem ser serenos. Ou, quando porventura se encontrarem, não poderão fazer a festa do diálogo. Que alegria essa, a do diálogo sereno! Sem gritaria, panelaços e palavras de ordem. Mansa, sorridente, tão fraterna. E conseguida graças a um rigoroso trabalho da ignorância que busca. Contra o orgulho que encontrou.
É assim. Sem a paixão da verdade, a ignorância se torna uma natureza, e os ignorantes mais espertos levam os outros na conversa. Mas o excesso de paixão cega. Impede de ver que o caminho continua. E que há tantos outros caminhos, divergentes, paralelos, pelos quais outras pessoas, irmãs na ignorância, vão andando com alegria e vigor. Devemos esperar os encontros fortuitos, e fazermos neles nossa tenda provisória. Conversar em volta do fogo e partir de novo. Cheios do que não tínhamos. Apaixonados e serenos. Procurando e esperando. Alguém virá.
Paixão e serenidade se opõem? É o que se diz. Gosto muito de um fragmento de Heráclito: “O contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. É uma sentença só de antônimos. Mas fala da unidade de tudo, tensa e bela. A harmonia e a guerra. A serenidade e a paixão. Divergentes, convergem. Sem elas, a morte.
Não queremos morrer. Por enquanto, não. Contra todas as evidências dos consumismos, ainda temos muito o que procurar. Ao poeta Sebastião da Gama perguntaram se ele tinha muito que fazer, e ele respondeu: “Tenho muito que amar”. Temos muito que amar. Serena e apaixonadamente.