Todo mundo conhece os pobres. Os despossuídos de tudo, humilhados pela vida que lhes foi roubada. As gentes tristes do mundo. As sem pão e sem beleza. As a que falta esperança. Que vivem dentro de um horizonte tão retraído que nele não cabe um futuro que não seja a repetição da vida ruim. Para eles e seus filhos. E netos. Como se a pobreza fosse genética e hereditária. Um fato da natureza. Ou um castigo de Deus, dos que vão passando através de gerações.
Nada de natureza, nada de Deus. Pobreza não é castigo. É imposição. Ninguém tem na pobreza qualquer alegria. Os catadores de lixo encontram nessa atividade o muito pouco com que se sustentam e às suas famílias, quando elas também não estão enterradas na sujeira dos outros, selecionando coisas ainda aproveitáveis, sabe-se lá para quê. É o limite do desespero. Salvar da aniquilação os rejeitos de vidas alheias, que, para quem está abaixo de todas as linhas da pobreza e da dignidade, valem a própria vida. Urubus voam por cima dos lixões. Aquelas montanhas são seus territórios de morte. Os que catam lixo disputam a vida com os urubus.
Sei que separar o lixo é uma atividade ecológica e economicamente relevante. O inadmissível é que ela não seja feita na recolha seletiva prévia do que ainda serve para algum fim útil e do que está destinado à putrefação dos cadáveres. Os catadores chafurdam em todas as porcarias para extrair delas uma garrafa, uma tampa de sanitário, uma bota velha de um só pé. Resgatam do naufrágio coisas tristes como eles, os jogados fora por uma sociedade que desperdiça coisas como desperdiça pessoas. Que joga fora o que não serve. Os pobres não servem para uma sociedade que consome acima dos limites de uma vida comum. Ou servem: alguém precisa fazer o trabalho sujo.
Entendamo-nos. Para os que estão ali, enterrados nos rejeitos da vida, disputando fiapos de coisas com os urubus, há uma dignidade específica, uma forma tristíssima de beleza no que fazem. Recusam-se a ser eles próprios tragados como lixo humano. Vão aonde ninguém vai, aos limites do horror, ganhar uma vida perdida. Onde não há dignidade é na atitude dos que não tratam os dejetos da cidade, acumulam-nos em montanhas, porque logo os pobres aparecerão para destrinchar dali o que ainda merece uma chance de vida. É contar com a horda de desespero das vidas tristes.
Penso num poema de Manuel Bandeira. Algo, um bicho certamente, remexia nas latas de lixo. “Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade.” E os olhos insones do poeta se estarreceram quando viu a verdade da miséria: “O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.” Esses bichos são homens. São como eu e vocês, meus companheiros de sábado. São homens.
Há outras formas de pobreza. Existem os que, atordoados pelo abandono e pela fome, embrutecem-se nas drogas. As mais baratas, mais terríveis, mais à mão. E se deixam largados no chão, esmagados de fome e de tristeza. Há os que se drogam para encontrarem dimensões mais largas de vida. Têm o que lhes chegue, comem e bebem, suas vestes não têm o puído da roupa única, arrastada ao longo da vida. Estetizam o sofrimento. Não conhecem a pobreza sem horizontes. Querem ampliar os seus, ter novas experiências... Mas às vezes acabam na mesma sarjeta, neopobres que fugiram da vida. Olho-os com tristeza ao lado dos que nunca tiveram nada.
E a fome! Meu Deus, a fome! A nós ronca o estômago quando se espaça demais o intervalo entre as refeições. A barriga dos pobres já não ronca. Seu vazio não tem o conforto da proximidade da próxima comida. São barrigas tristes. De dor interna e de abandono. Deitados nos cantos dos edifícios, nas calçadas onde moram, estendem mãos sem esperança. “Para comer”, dizem. E nós passamos, tomando distâncias cautelosas, pela ponta dos meios-fios. Podem ser perigosos. Estão sujos. E cheiram mal.
Há as mães que trazem os filhos pequenos, mostram suas carinhas tristes. Apelação, pensamos. Marketing do desespero. E até nos indignamos com essa exposição de crianças que deveriam estar... estar... onde? Na escola? — E passamos também ao largo, incomodados com aquela obscena demonstração da extrema tristeza.
Passamos ao largo. Tomamos distância. Fugimos. Deles, sim. Mas, no mais fundo das nossas consciências adormecidas, fugimos de nós. Os pobres, lixo da vida, estão lá — e nem nos acusam! — e nos lembram do outro lixo, aquele em que jogamos coisas ainda usáveis, sem pensarmos que alguém naquela calçada podia fazer com elas uma roupa, um abrigo para o frio. Um farrapo de esperança digna. Fugimos do beco onde algo chafurda nas latas de lixo, e come com voracidade o que encontra. E não é um bicho, meu Deus. É um homem.