Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Pensar ou não pensar,

Não pensar provoca maremotos humanos. Escravidão de negros. Subordinação das mulheres. Caça às bruxas. Discriminação (30/04/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

eis a questão. Ser ou não ser, escreveu Shakespeare, ecoando os antigos gregos. Hoje parece que a fronteira se põe entre exercer o pensamento ou não. Ambas as atitudes vão direto ao coração da vida. Uma acarinha. A outra golpeia. Pensar traz o mundo e a vida para perto. E sorri com eles. A vida, o mundo, merecem um sorriso bom. Não pensar, agir por impulso cego, por reflexo, afasta. Julga. E quem, nesse caso, julga já previamente condenou. Condenar o mundo e a vida! Não pensar produz esse absurdo. Não deixa virem com amor as diferenças. Discrimina.

Somos todos preconceituosos. Os mais sábios, os mais santos. Os mais delicados. Nossa atitude natural é a de nos defendermos do que não somos. O estranho é assustador. Um animal que nos encara. Uma mulher, ou um homem, que nos exibe sua diferença. Outra cultura, fora dos nossos hábitos, ex-ótica. Deus. Diante da diferença, recuamos. Compreensível instinto de defesa. O que não é compreensível é a ausência de curiosidade. Chegar perto devagar. Rodear, andar em torno. Pôr a mão de leve. Se estiver tudo bem, ensaiar um carinho. Se a reação for boa, arriscar um abraço. A curiosidade é amorosa. Quando a exercemos nos livramos de discriminar o que não somos. Chegamos perto, incorporamos, oferecemo-nos. Pensar tem esse resultado. Não pensar é a atitude de quem toma o preconceito como verdade, e discrimina. Não passa pelo amor, não consegue formar um conceito sobre os diferentes. E os afasta com horror ou com desdém.

Pode parecer estranha essa aproximação entre pensamento e amor. Não é, se olharmos bem. Quando pensamos, esforçamo-nos por sair da ignorância, que distancia, para o conhecimento, que reúne. Do pré-conceito à compreensão mais clara das coisas. Não nos daríamos esse trabalho todo se o desejo de nos unirmos a tudo que está no mundo e lateja na vida não estivesse no centro ético da nossa existência. Sem dúvida houve muitos filósofos para quem o pensamento se passava todo dentro das suas cabeças, e não vazava pelos olhos abertos sobre as coisas. A razão pode adoecer assim. Mas desde cedo a filosofia serviu para dar clareza à vida. E essa filosofia ama o que pensa. E pensa com amor. Cuida do que há a pensar. Protege-o da nossa tendência à discriminação.

Se exercitarmos a nossa memória das palavras antigas e as deixarmos falar, vamos encontrar, por exemplo, que num português talvez já em desuso um curativo se chama um “penso”. Muitos de nós se lembrarão da expressão “pensar uma ferida”. Pensar já teve conexão direta com curar. E a palavra latina “cura” significa cuidado. Quem pensa, cuida. Pensar é antes de mais nada um afeto, uma amorosidade. Depois vem o resto.

Não pensar é o contrário. Os que não têm amor suficiente para se porem a pensar naturalmente discriminam. Se os preconceitos são brancos, a discriminação é negra. Quando o preconceito é macho, a discriminação é fêmea. Se o preconceito põe tudo que é bom no colo de Deus, discriminados são os que não o conhecem, ou não o desejam. Os que trabalham não raro discriminam os que não encontram em que trabalhar, como se a ausência de trabalho fosse uma moleza preguiçosa. Os que têm olham torto os que não têm, porque creem que lhes falta a ética necessária ao ter. Weber escreveu sobre isso um belo livro. Cristãos que não pensam discriminam muçulmanos, postos todos sob o verbete “árabes” e a rubrica “terroristas”. Não lhes importa que a maioria dos muçulmanos seja africana, que o maior país muçulmano seja a Indonésia, e que o terrorismo não tenha raça, etnia ou credo. Os que não pensam talvez leiam essa última frase discriminatoriamente, como uma tentativa de justificar o indesculpável. Se agora lhes disser que o terrorismo dos inquisidores foi tão pouco cristão quanto o das Torres Gêmeas foi muçulmano, esse artigo subirá alguns pontos no índex dos que não pensam. É assim.

Não pensar provoca maremotos humanos. Escravidão de negros. Subordinação das mulheres. Caça às bruxas. Inquisição. Discriminação social. Discriminação sexual. Discriminação de povos e etnias. Discriminação religiosa. De cá para lá e de lá para cá. Seja onde forem lá e cá. A discriminação fica frequentemente nas fronteiras da criminalização. E criminalizar alguém por ser diferente é o avesso exato de amá-lo pela e na sua diferença. Entre pensar e não pensar está o abismo do desamor.

O nosso tempo talvez esteja atraído por essa voragem. Sem esperança, perto do desespero. O ato, de aparência simples, de insistir em pensar o mundo e a vida escondidos por trás da opacidade das conveniências, discriminações e violências pode ter a serventia de exercitar o amor. Lançar boias, à falta de âncoras. Cordas de afogado, na ausência de pontes.

Amar ou não amar, eis a questão. A verdadeira, a tremenda, a radical questão.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)