O Brasil tem povo, claro. Duzentos milhões de pessoas, uma população. Um território contínuo. A mesma língua. Diferenças de interesses sociais, econômicos, culturais, provocando dissensos e consensos e um movimento no tempo. Um temperamento comum, outrora cordial. Alguns valores próprios. No entanto, é possível que esse povo não seja uma Nação. E nessa época pós-moderna de “fim da história” e diminuição de poder dos Estados nacionais, não ser Nação pode tornar esse povo irrelevante no mundo.
Mas Estado o Brasil tem. Podemos estar vivendo esse enorme paradoxo: termos Estado e não sermos Nação. O Estado é a Nação politicamente organizada. A Nação é o povo politicamente organizado. Estado nós temos porque herdamos. Ao povo não foi permitido organizar-se de modo que seu passado de luta e festa, discórdia e amor, fizesse para ele uma História. Não são os Estados que têm História, são as Nações. E para nós talvez os canais de circulação das forças vitais de uma Nação tenham sido entupidos na Colônia, e depois, o hábito ajudando, não tenham conquistado uma razoável permeabilidade.
Mas Estado, Estado temos. Herdamos de Portugal. E repetimos. Como se fosse o único modo de organizar o poder. Portugal precisou inventar um Estado antes que andasse por ali um verdadeiro povo português, pronto a organizar-se em Nação. Precisou disso. Os galegos ao norte, os espanhóis a leste, os mouros no sul — e no oeste o mar. Um território encurralado. Na sua defesa, nasceu, ainda no século XII, a monarquia mais antiga da Europa. As outras, os Estados modernos, já se erigiram a partir da história dos seus povos, de identidades conflituosas, mas seguras, mais tardes chamadas “identidades nacionais”. Portugal foi um Estado que criou uma Nação. Efetivamente criou-a. E com ela pôs no mapa um mundo. O nosso.
No Brasil também o Estado precedeu a Nação. É um começo torto, quando acontece. É preciso prestar muita atenção ao que fermenta no povo para pôr-se o Estado em sintonia com ele, e deixar vir uma Nação e correr uma História. Aqui, aparentemente, não se fez. Os movimentos que procuraram expressar valores fortes, identitários, partilháveis, foram submetidos. Ia escrever “esmagados”. Estou generoso hoje. O certo é que a Nação não foi chamada à “sua” independência. O Príncipe resolveu o assunto. A Independência foi “declarada”. A República também. O general Deodoro, líder da “Questão Militar” que sacudia Império, foi posto a cavalo no Campo de Santana e, parece, gritou “Viva o Imperador!”. Para uma proclamação da República, meio xoxo... Só à noite o convenceram a formar um governo provisório. A República nasceu na casa de Deodoro, numa reunião. O povo, estampou um jornal do dia seguinte, “assistiu bestificado” a essa Proclamação. Não foi convidado para a festa. São apenas dois marcos, a Independência e a República. Mas que marcos! O que eles mostram é isso: há projetos de futuro para o Brasil — mas são improvisados, pertencem às elites, dispensam o povo, e não resultam de um passado avolumado pesando sobre o presente, dando-lhe mobilidade de ruptura. Futuro de Estado. Ausência de Nação. Carência de História.
Animaram-me apesar de tudo as manifestações de 2013. Não tinham bandeiras. Ou tinham-nas demais. Não apresentaram propostas, ou apresentaram demais. Não tinham projeto. E isso não me pareceu ruim. Porque projetos, no Brasil, sempre pertenceram ao Estado. Inclusive o projeto de democracia, que não subiu de um povo derrubando bastilhas. 2013 deu alguns bons sinais: o Estado que venha ao nosso encontro, os partidos que nos representem. Ou teremos problemas. Sérios. — O Estado não se moveu. Os partidos fingiram que não era com eles. Resultado: na saída das eleições de 2014 jornais estamparam um mapa do Brasil azul no Sul e parte do Sudeste — o Brasil mesmo —, e vermelho daí para cima — a Nova Cuba. Que foi como dizer: se saiu Nação das urnas, saíram duas. E só uma é Brasil. Hoje, nas ruas onde as “duas Nações” se enfrentam, um dos sinais dessa dualidade é o monopólio dos símbolos nacionais por uma das forças em confronto. Há outro símbolo, recíproco: o ódio. A xenofobia interna. A vontade de uma parte do povo expulsar a outra para os quintos dos infernos. A mesma língua já não garante unidade. Inventam-se palavras para recusar a fraternidade de um povo em comum.
É para nos preocuparmos. O Estado brasileiro está num momento de abismo. E não está contando com uma Nação para lhe servir de abrigo e afago. Sem Nação, o povo terá sido derrotado de novo. Mas dessa vez por si mesmo. Será ele, seremos nós, os responsáveis, perante a História, por não termos constituído uma Nação quando ainda dava tempo, bem agora, no vendaval do furacão.
Ainda dá. Ainda dá? Quem sabe? Alguém, depois de amanhã, saberá?