Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

O cachorro de Pavlov

Há um animal se formando em nós, que acabará comendo a si mesmo (09/04/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Platão, no século IV a.C., elaborou uma curiosa teoria da alma. Precisava dar conta de que saber e não saber podem andar juntos, e que esse paradoxo é que ancora a possibilidade de pensar. Sabe-se e não se sabe ao mesmo tempo quando se esquece. Tirar do esquecimento o que se sabe é o trabalho do pensamento. Saber e não saber, que nos acostumamos a ter como antagônicos, andam necessariamente misturados. Essa mistura foi sustentada por uma engenhosa teoria da alma.

Almas, temos três, disse Platão. Duas habitam o corpo, e uma, embora o habite, pertence aos deuses. A alma irascível, das reações violentas, a mais animal das três, mora no fígado. Dessa localização ainda temos memória quando dizemos que duas pessoas são inimigas figadais. O fígado reage. O fígado não pensa. A segunda alma tem sede no plexo solar, no coração. É afetiva, amorosa. Ainda dizemos, das pessoas boas, que têm bom coração. O coração, porque percebe os outros e o mundo, e é capaz de amar, pensa um pouco. Mais sente do que pensa. E é bom que seja assim. E há finalmente a terceira alma, separada do corpo pelo “istmo do pescoço”: a racional, que habita a cabeça. Essa já contemplou as Ideias perfeitas, acompanhou a procissão dos deuses. Depois veio servir a um corpo. E as urgências do corpo a fizeram esquecer o que ela sabe, e continua a saber, no modo do esquecimento. Pode ser trazido à tona. Basta recordar. O pensamento é esse ato de recordação. Traz o que já se sabe do oculto para a luz. O pensamento é conduzido pela luta entre a alma intelectiva e as outras duas, que pertencem ao corpo e pesam sobre ela. Esquecer é natural. Lembrar é um trabalho. Pensar pertence ao esquecimento e à memória. Está entre. Passa-se num corpo em que ainda estão os deuses.

Nesse momento, no nosso país, estamos pensando com o fígado. Os animais, diante de uma situação de perigo, têm duas possibilidades: ataque e fuga. Matar o inimigo ou proteger-se dele. Há um cálculo sutil no comportamento dos animais. Como se tivessem o livre arbítrio que atribuímos aos humanos. Podem escolher. Parece que aqui, nesse nosso momento, decidimos abrir mão de escolher. O ataque pode estar sendo exercido como uma reação automática. Na política, atacamos. Reagimos como a alma irascível de Platão: sem amor nem conhecimento. Reagimos com o fígado. Mas o fígado não pensa. Age por condicionamento. Baba. Como o cachorro de Pavlov.

O cientista russo Ivan Pavlov desenvolveu a teoria do reflexo condicionado. Seu experimento clássico consistiu em apresentar um suculento pedaço de carne a um cão, que naturalmente o desejava, e mostrava seu desejo babando. Então Pavlov tocava uma campainha. Com o passar do tempo, o cientista não precisava mais apresentar o bife: tocava a campainha e o cão babava. Fora condicionado a reagir à ausência do seu objeto de desejo, cuja memória estava presente no toque da campainha. Lembrava-se de uma coisa que desejava. Queria-a de volta. Tinha-lhe amor. Amor de cachorro, mas amor. Parece que por aqui nós andamos babando sem amor.

Babar sem amor significa não tolerar a companhia daqueles de quem discordamos, com quem não queremos nenhuma proximidade. O outro suja. Atacá-lo é a única reação desejável. Para destruir. Tirá-lo da nossa presença. Apagá-lo inteiramente. Como o poeta Manuel Bandeira desejou para o seu túmulo: nem a memória de um nome. Parece que estamos numa situação dessas: eliminar, e não conservar sequer uma memória, que nos mostre que uma história se passou. Abolir também a história. Que tudo comece conosco. Do zero. Sem “eles”.

O cachorro de Pavlov teve sua vingança. Conta-se que um primo foi visitá-lo no laboratório em que ele se submetia a ser reduzido a um feixe de reflexos. Viu o primo ocupado e não quis entrar. Quando o cachorro de Pavlov finalmente saiu, reclamou dele, por que não entrara? E o primo do cachorro de Pavlov respondeu: “Não entrei, primo, porque vi que você estava ocupado condicionando aquele homem. Percebi que toda vez que você babava ele era obrigado a tocar uma campainha”.

Ainda temos tempo de recuperar pontos de vista inesperados, bem-humorados como esse. Subirmos um degrau da alma, para o coração, sede do amor. Nem o cachorro de Pavlov foi dominado pelo fígado. Ele não odiava nada. Desejava. Era, como frequentemente dizemos dos cachorros, quase humano. Nós é que, parece, estamos deixando até de ser quase cachorros. Há um animal se formando em nós, que acabará comendo a si mesmo. Um animal que só reage pelo fígado. Desumaniza-se. Porque o fígado não pensa. Nem ama. E pensar e amar são o que nos faz humanos.

Ainda há tempo de convidarmos o primo do cachorro de Pavlov para nos ensinar um humor que já tivemos. Perdemos. Vivemos imersos, esses dias, num intolerável mau humor. Isso é que é vida de cão.


 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)