O mar e a praia
Na guerra a verdade naufraga. Um naufrágio que é triste demais (26/03/2016)
* Leia no site dO Globo ou abaixo.
A maré alta é boa coisa. Traz o mar aos nossos pés. É mais alegre do que a vazante. Mostra a natureza irrequieta das águas grandes. Em geral gostamos da maré alta — a praia não gosta. Quando a água sobe a praia some. Quando a água reflui a areia aparece. E sua qualidade, clara ou cinzenta, se revela. Pensamos logo: essas duas situações se excluem. Pensamos também: é uma questão de ponto de vista. Se é a areia quem fala, a maré baixa é a verdade da praia. Se são as águas, a maré cheia é a verdade do mar. Porque é da verdade que se trata aqui.
E é preciso que se diga logo: a verdade da praia e do mar é não haver um sem a outra. Isso é que é real. Sem esse vai e vem, praia e mar não existem. A praia se esconde quando a água sobe — mas não desaparece. Seu escondimento é condição para a cheia da maré. E o contrário: quando as águas baixam, a terra aparece: a condição para vermos a terra é que o mar se encolha. Um movimento pertence ao outro. Sem a sequência de velamento e desvelamento não dá para ir à praia. Ou não encontramos areia para a nossa barraca, ou não está lá o mar para o nosso corpo. E ficamos mais pobres.
Esse pode ser um exemplo para compreendermos a mais antiga experiência de verdade que os gregos fizeram, e que perdemos inteiramente. A de que a verdade não mora nas falas e nos discursos, mas nos movimentos do Real. Não pertence a nós. Pertence a tudo que se mostra e se esconde. Pertence ao mundo. Nós o que temos para fazer é curvarmo-nos sobre ele e deixá-lo vir. Apreciar o sol mesmo quando ele não está no nosso céu. Podemos confiar nele. Na sua hora própria, que pertence a ele, não à nossa angústia ou desejo, virá. Sempre vem. É certo, por outro lado, que, se não estivermos atentos ao seu escondimento, ele virá de todo modo, mas nós não daremos por isso. Estaremos distraídos. Desamorosos para a vinda do sol.
Buscar a verdade demanda amor. Desvelar o Real, deixá-lo brilhar, pede que nos desvelemos por ele. Que sejamos respeitosos com os seus escondimentos. Amemos o que, eventualmente, não está presente. Mas estará. A essa linda compreensão da verdade os gregos do século VI a.C. deram o nome de alétheia. O desencobrimento do encoberto. Um e outro. Sem exclusão. Perdemos essa experiência. Com essa perda tivemos dramaticamente reduzida a nossa capacidade de amar. E logo aqui, no território da verdade! A verdade, que nos libertará.
Quando olhamos para o Brasil, hoje, encontramos tudo branco no branco ou preto no preto. Antigamente (nem foi há tanto tempo), quando se queria dizer que uma coisa merecia confiança, pensava-se numa folha em branco que progressivamente a tinta ia cobrindo com os arabescos das palavras. Preto no branco, dizíamos. E dizíamos: dou a minha palavra. Hoje, parece, dar a palavra perdeu o valor. Porque, pensa-se, todos mentem — menos, é claro, cada um de nós. Não podemos confiar no que nos dizem, em nada do que se põe preto no branco. Porque preto não é branco, branco não é preto, e é melhor mesmo que não se misturem. O problema é que preto no preto não se lê. Nem branco no branco. Não tem importância, dizem os desamorosos da verdade. Nós já sabemos, não precisamos mais procurar. Que tristeza. O mundo perdeu o ritmo. As marés ficaram suspensas. Não há mais abraço do mar à terra. Quando o mundo para assim, a paz acaba e a guerra vem. Duro e aterrorizante que seja, é preciso reconhecer: estamos em guerra. E não era preciso.
Quando as pessoas se amavam não havia sentido em se excluírem mutuamente. O pouco de luz que uma trazia misturava-se com o pouco de luz carregado pela outra. As escuridões se reduziam. E desse encontro luminoso uma coisa aparecia, que era amada em comum. Essa coisa era a verdade. Agora, parece, e é triste e assustador, cada um sabe de antemão a verdade, e não é a do outro. Já não se precisa do outro, ele que não perturbe! Ele está errado! Como, em relação à mesma coisa, não há duas verdades, a bonita oscilação do mar e da areia já não nos serve. Ou bem, ou bem. O diálogo está cassado.
Houve um tempo em que falar com os outros era uma alegria. E interromper, quando alguém parecia se tornar dono da verdade, uma obrigação. Ninguém levava a mal. Falava-se, calava-se. E a verdade ia-se instalando na conversa amorosa. Hoje, a se acreditar nos jornais, nas redes e nos ressentimentos, essa conversa sorridente acabou. Mas eu me lembro do tempo em que falar e calar eram um modo da alegria amorosa. E não estou tão velho que minha memória se perca na névoa de um tempo que não retornará. Retornará, sim. Está escondido, porque também o tempo se retrai. E se mostra. Retornará o tempo de conversar.
Mas precisamos buscá-lo desveladamente. Ele não se dá a quem não o quer. A quem se quer mal. Na guerra a verdade naufraga. Um naufrágio que é triste demais.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)