Segundo time
Os filósofos consagrados se apresentaram no outro sábado, neste surgem uns menos conhecidos (05/03/2016)
* Leia no site dO Globo ou abaixo.
Vamos nos pôr de acordo: o segundo time é o time principal quando a tática pede. Isso vale para os filósofos. Os muito consagrados se apresentaram no outro sábado. Neste entram em campo uns menos conhecidos, mas donos de habilidades insuperáveis. Lucrécio, Sêneca, Beda, o Venerável, Montaigne, Pascal e Kierkegaard. São mais leves. E têm sua hora.
Dependendo do adversário, esse é o time. O B. E o adversário, nesses jogos, é a força sem sutileza, a brutalidade que despreza. Desses, há seleções inteiras. São os hiperdogmáticos, os que nem precisam de um sistema bem formado para ter certezas definitivas. Alguns estão entre os cientistas que venderam a alma à eficácia das tecnologias. São bons de conta, produzem resultados práticos poderosíssimos. Inventaram as cápsulas de gás para os campos da morte e a bomba atômica. Olham com desprezo os que, penosamente, insistem em procurar a verdade, porque ela lateja neles. E há um outro contingente de jogadores pesados: os religiosos sem humildade, sobre os quais não dançam sombras. Os que nunca atravessaram desertos. Os que desamam Deus.
Esses jogadores estão por toda parte à nossa volta. Pautam a mídia. Têm presença pública. Se os conhecessem, desprezariam os jogadores do segundo time. Jogarão só com a força que julgam ter, e lhes basta. Mas, se Deus estiver atento ao jogo, perderão. O segundo time é surpreendente. É humilde. E a humildade é uma força inesperada.
Alguns desses nossos jogadores passaram suas vidas procurando a felicidade. Nada maiúsculo, impressionante. A pequena felicidade da vida bem vivida. Sem estardalhaços. Escreveram poemas, cartas e ensaios. Houve um que andou por tentativa e erro, sem certeza nenhuma. Apostou. Podia perder. Talvez tenha morrido sem conhecer o resultado. Teve aquele que guardou, guardou. No futuro alguém poderia precisar das coisas que ele resguardava. E então encontraria. E houve o que se espantou enormemente com a arrogância da razão, tremeu por causa dela. Boa equipe.
Ficha técnica. Lucrécio, no século I a.C., ensinou, num belo poema, que só se encontra alegria se o orgulho de tudo saber, dizer e fazer for banido das nossas vidas comuns. Esse orgulho das certezas desarrazoadas, do homem maior do que a vida. Ensinou que quando o grande vento varre o mundo, sábios são os caniços que se inclinam como quem dança, e voltam, humildes e inteiros, quando o vento passa. E que os carvalhos orgulhosos quebram no vendaval. Sêneca, no século I, trabalhou sobre si mesmo, examinou-se, absteve-se do que humilha a pobreza essencial da vida. Viveu como quem não merece a verdade. Essa foi a condição para que ela viesse ao seu encontro. Sêneca escreveu cartas, conduziu suavemente seus correspondentes a esse caminho da simplicidade. E escreveu um livro sobre a amizade. A amizade.
Beda, o Venerável, foi um guardião. Viveu no século VIII, quando o pensamento parecia ter chegado ao seu limite. Não se inovava mais. Mas um tempo não é todo o tempo. O pensamento antigo seria de novo necessário. Estaria ali, onde Beda o guardou. Amorosamente. Docemente. Com uma humildade enternecedora.
Montaigne, no XVI, quis saber o que era a vida pensando sobre a vida que vivia. Nada de “a vida”. Sua vida. Vivê-la e pensá-la. E oferecê-la. Não em tratados, em que ela não cabe. Em ensaios. Por ensaios a vida se faz. Cabe neles. Pascal também escreveu como quem vive. Esteve presente ao que pensava. Seu livro se chama, com delicada simplicidade, “Pensamentos”. Apostou que Deus existe. Se existir, ganharia tudo. Se não existir, não perderia nada. Se apostasse que não existe, e existir, perderia tudo. Sabia o quanto estava em jogo, no cético século XVII. Por isso aprovou “os que buscam gemendo”. Esse pode ser um marco no caminho dos que não têm certezas.
Kierkegaard, no século XIX de Hegel, espantou-se por parecer evidente a todos que o Homem da Razão não pudesse ser superado, mas ninguém mais pensasse em Abraão, o Homem da Fé. O que enfrentou Deus pela obediência absoluta, e comoveu o Altíssimo. Javé lhe pediu seu filho Isaac. Abraão o entregou. E Deus não o tomou para si. No temor e no tremor, Abraão foi maior e menor do que a vida. E Deus lhe deu, junto com seu filho poupado, um povo inteiro. Para Kierkegaard era um espanto que Hegel, o homem da razão, grande filósofo que fosse, mas incapaz de medir-se com Deus, pudesse ser a régua e o compasso da humanidade.
Cada um na sua área do campo e com sua especialidade humilde, esse é o time que lutará com os dogmáticos da certeza, os cientistas que perderam a verdade e os religiosos que a possuem só para si. São gente perigosa, essa. Os nossos são muito tranquilos. A serenidade é a melhor disposição para as batalhas que parecem perdidas. Vamos marcar essa palavra, serenidade. É daquelas que dão a pensar. Uma palavra que sorri.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)