A música, antes de tudo
Verlaine escreveu como quem formula uma lei: 'De la musique avant toute chose' (20/02/2016)
* Leia no site dO Globo ou abaixo.
“E a música?”, alguém me perguntará. “Você se esqueceu dos músicos no seu exército maltrapilho!” Não esqueci. Precisei passar pelos convulsionados antes. Pelos filósofos que perderam o Ser, mas podem ancorar na vida. Pelos poetas que perderam a serventia, mas guardam o segredo das palavras extraordinárias. Pelos místicos, assaltados pelo excesso de imagens, ameaçados de não poderem mais fechar os olhos, mas aprendendo um olhar translúcido para além das sombras do consumo. E, surpresa, os cientistas, os duros, que acreditam no homem, e talvez até deixem no mundo um oco para a habitação de Deus. Esses são os que precisam ser resgatados. E aí vêm os músicos. A música. Agora.
Às vezes penso cenicamente na origem do nosso universo. Deus no seu trabalho. E há música. Não imagino o que possa ter sido sua trilha sonora. Pelo menos o murmúrio da brisa leve com que apareceu a Elias. Violinos com arcos tão suaves que mal tocavam as cordas. E se fez a luz. Um staccato muito curto de violoncelos. E as águas se separaram das terras, e houve o som das marés. Uma escala delicada de harpa. E as cachoeiras, pratos rumorosos, batidos e agitados. A afinação de orquestra dos seres vivos pode ser imaginada. E a flauta esperançosa das mulheres e dos homens. E seu fagote agourento. Nos dois extremos do sopro, a primeira contradição. E pronto. A harmonia estava feita. Por último, Deus criou a pauta, para que pudéssemos, pelos séculos, inscrever na limitação das linhas a harmonia primordial. Às vezes, muitas vezes, acertamos. E ficamos felizes.
Pensei nessas coisas enquanto assistia ao documentário “Another day another time, celebrating the music of inside Llewyn Davis’’, dos irmãos Coen. Recomendo muito. Não se preocupem com a língua. A canção que levantou o público foi cantada numa língua incompreensível. Com acompanhamento de sorrisos grandes e curtas lágrimas. Os músicos no palco sorriram o tempo todo. Da pura alegria de estarem juntos acima do mundo. Da banalidade mercantil do mundo. E fazerem outro, até soar o último acorde, e um pouco depois, no nosso último encantamento. Esse é o segredo da música, e é por isso que ela não precisa de resgate: nenhuma necessidade de representar o mundo dado atravessa a respiração dos instrumentos e das vozes. Outro mundo se faz ali. E nós imediatamente o habitamos. E é uma extraordinária felicidade. Não é escapismo. É criação pura. Os músicos escrevem na pauta que na última hora Deus criou. Onde não havia nada, de repente há. E vemos que é bom. E dessa vez não queremos nenhum fruto proibido. Somos felizes, e basta. O paraíso não se fecha para nós. Dura um concerto. Mas se estende para a vida comum. Assobia-se, cantarola-se, canta-se a plenos pulmões a memória do paraíso. Não consigo imaginar Deus como um bloco maciço de silêncio. Ele não seria perfeito sem os seus sons.
Na sua narrativa do mito do Doutor Fausto, Goethe quis reescrever o início de São João — “No princípio era o Verbo’’. Tentou “No princípio era a Força’’. Pouco. “No princípio era a Ação’’. Convenceu-se com essa. Era o século da revolução industrial. Fazia sentido. Mas não valia para as velhas civilizações do Ocidente, para a Ágora, o Forum, os claustros gregorianos, os palácios de Vivaldi. Verlaine, imensíssimo poeta, escreveu como quem formula uma lei: “De la musique avant toute chose.” A música antes de qualquer outra coisa. Antes de tudo. No princípio foi a Música.
Antes da poesia, que foi composta para ser cantada. Antes da filosofia e da ciência. O matemático e filósofo Pitágoras, no século VI a.C., não encontrou na música das esferas, na harmonia celeste, a chave da sabedoria? A música não foi ensinada, na Antiguidade e na Idade Média, como uma das artes matemáticas, a dos intervalos e pausas, das correlações totalmente equilibradas, da aritmética dos sons? Antes de tudo, junto com tudo, a música.
Segredo talvez não haja. Há características de que só ela dá conta: é universal; está dispensada de representar. É possível reunir, como Barenboim fez, uma orquestra composta exclusivamente de jovens músicos palestinos, árabes e israelenses. Quaisquer que sejam as diferenças, durante o tempo de um concerto o conflito silencia, e a música gesta um mundo sem fronteiras nem arames farpados, um palmo de terra limpa para embalarmos nossa alegria. Os músicos sorriem. Venceram a guerra. No filme “Le concert’’, o maestro explica a um membro do Partido Comunista que o verdadeiro comunismo acontece quando a orquestra toca junta, e são todos irmãos e iguais. Ali outro mundo é possível, e realmente acontece. Depois acaba. Mas haverá outro concerto. E a “crise da representação’’ também não pega a música. Ela não precisa representar. Não tem fora. É todo um corpo cheio de som.
Como, imagino, foi, é e será o corpo de Deus.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)