Os filhos das trevas contra os filhos da luz
Assumir essa oposição é perigoso, mas é tentador (13/02/2016)
* Leia no site dO Globo ou abaixo.
Esse é o título de um rolo encontrado em Kumran, perto do Mar Morto, em meados do século passado. Sua ideia ressoa no Apocalipse de São João, último livro do Novo Testamento, escrito por volta do ano 100. Neles se trata do Bem e do Mal. Assumir essa oposição é perigoso para quem quer conversar sobre a vida. Mas é uma tentação multimilenar, essa do maniqueísmo.
‘Maniqueísmo” deriva do persa Mani, do terceiro século d. C. Pregou a dualidade irreconciliável do Bem e do Mal, que regem o universo. Seguiu o profeta Zoroastro, que, espantado com a ideia de Deus ter criado o Mal, admitiu dois deuses. Ormuzd era bom. Arimã criou a matéria. Sem má intenção, suponho. Mas é nela que reside o Mal. Problema resolvido.
Nada. Problema criado. A tentação maniqueista está presente desde a aurora da cultura cristã. Santo Agostinho foi maniqueu na sua juventude. Ainda há traços de maniqueísmo na solução que deu ao problema da salvação: não pelas obras, iniciativa dos homens, que tendem ao Mal, mas pela Graça, liberdade de Deus, o puro Bem. Em troca, a liberdade humana ficou dramaticamente reduzida. A Igreja Católica escolheu as obras. Lutero escolheu a Graça. Ainda não fechamos esse processo.
Ele é muitíssimo mais antigo do que o rolo de Kumran e o livro do Apocalipse. Mais velho do que Zoroastro e Mani. Pode remontar há uns seis mil anos. Mal havíamos inventado a agricultura. Segundo Jami Tehrani, da Universidade de Durham, Inglaterra, e Sara Graça da Silva, da Universidade Nova de Lisboa, data dessa época o mais antigo conto infantil, umbigo dos demais: “O Ferreiro e o Diabo”, um pacto pela perda da alma em troca de poder. O mesmo que atravessou nossa cultura moderna, desde pelo menos o século XVI, quando Marlowe escreveu “A trágica história do Doutor Fausto”. Goethe o seguiu no século XIX. Thomas Mann no XX. Sempre o Mal tentando o homem. E o homem cedendo. No de Goethe, o amor vence no final. No de Mann, a morte. Amor e morte. Também é um processo que não conseguimos fechar.
O Bem, o Mal. Deus e o Diabo. A Igreja Católica não tem dogma sobre a existência do Diabo. Diabolon é a força que separa. Se ela for igual a Deus, haverá, afinal, dois deuses. Zoroastro terá razão. A solução cristã foi há muitos séculos tratar o Mal como privação do Bem, relativo ao Bem, sem realidade ontológica. Habita os detalhes. Pisca o olho para nós. Seduz. A astúcia do Diabo, dizem, é fingir que não existe. Mas Lutero atirou um tinteiro contra ele em sua cela em Wittenberg. A mancha ainda está lá. A mancha do Diabo.
Ensinamos e aprendemos que em toda situação complexa há bem e mal, escuridão e luz. Ou não seria complexa. O mundo é assim. Ir para ele com julgamentos pré-concebidos não ajuda a vida. Ao contrário: julga e condena. Estigmatiza e reduz. Da vida, cheia de acidentes e relevos, regatos e tsunamis, faz-se uma planície chata, em que se vive mornamente. Nenhum entusiasmo. Nem uma estrela que dança. Nem Deus.
A tolerância é, por isso, a grande virtude. Não julga. Inclui o amor. E respeita a verdade e a justiça. Anda muito em falta, raramente se encontra nas boas casas do ramo, no nosso país hoje. Um pouco mais desse remédio faria um imenso bem às pessoas e às instituições. A taxa de ódio circulante é monstruosa. Quase ficou proibido ser generoso, acolher as diferenças. Difícil viver feliz assim. É maniqueísmo em estado puro.
O problema é que até a tolerância tem limite. Ou não é tolerância, é covardia. Ou cumplicidade. Que tolerância é possível ter com os responsáveis pelas migrações tristes e pelos que nelas se afogaram, abismados para sempre no grande mar? Com os que violam meninas e as impedem de estudar? Com os manobristas de drones que matam inocentes? Com os poucos que açambarcam sozinhos a riqueza que daria uma vida suave para todos? Os que tiram o trigo do pão e o põem no mercado de commodities? Com os que assassinam desenhistas e atiram sobre pessoas comuns, que apenas bebem e dançam? Com os que se explodem nos ônibus escolares? Não gostaria de usar essa palavra, mas é a única: a barbárie, as barbáries são intoleráveis. Contra elas, a indignação não é um feio maniqueísmo. É a salvação das nossas vidas. Da Vida. A reação saudável dos que têm esperança. Os outros, é pena, silenciaram. Estão escondidos na tristeza e no desencanto. São presas fáceis do desamor.
Para a indignação precisamos dos poetas que cantam, e dos filósofos que refletem. Dos místicos que desvelam o indizível. E daqueles cientistas que ainda acreditam que sem homens e mulheres livres de todas as submissões, inclusive as impostas pela ciência, o tempo fecha. O sol se cansa. A vida ensombrece.
Essas pessoas existem. Não as conhecemos, mas estão por aí, entre nós. Existe esse exército da intolerância amorosa. O exército dos filhos da luz.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)