Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Os construtores da terra

Temos sede de extraordinário. Os cientistas precisam olhar para nós (30/01/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Tudo para nós se dá no tempo. Por isso dividimos nosso passado em períodos, e a cada um atribuímos uma identidade. Da pré-história à pós-modernidade. Mas os pós-modernos garantem que as durações acabaram. Jogaram fora o carbono 14. Fim da História. — Duvido. Mas não sei.

Sei que lá no nosso passado sempre houve os que nos disseram que horas são. Como é o tempo em que vivemos, sonhamos e amamos. Entre o instante fugaz da vida vivida e a eternidade, a existência tinha o sentido que eles nos ensinavam. Um sentido absoluto. Conseguíamos viver nossas vidas magnificamente comuns porque conhecíamos os valores que emprestavam sentido a viver. Havia construtores da terra que nos davam o chão. Andávamos pela terra que eles nos davam. E assim estava bem.

Os construtores da terra inventavam, com convicção e beleza, as balizas da vida. Os modelos pelos quais aprendíamos a ser, pensar, dizer e fazer o quê, sem termos consciência desses paradigmas, íamos todos os dias pensando, e fazendo, e dizendo, e sendo. Devemos o coração da nossa História aos construtores da terra. Eles também não sabiam, quando inventavam os valores de viver, que era isso que estavam fazendo. Pensavam que apenas compunham poemas e cantavam. Refletiam e sentiam raízes e fundamentos. Os poetas, filósofos e místicos foram, para nós, ocidentais, os construtores da terra.

Pensemos em Homero. Ele cantou uma guerra e uma viagem. Provavelmente era tudo o que queria. Mas um povo que ainda não existia, o grego, criou-se em torno da Ilíada e da Odisseia. Viveu como se a luta fosse o sangue que os reuniria e manteria unidos no território que inventaram para si. Viveu também como se, no final das contas, o que definia a vida nessa terra fosse voltar para casa. Viajar o quanto fosse — e voltar. Voltar sempre, a maior viagem.

Pensemos em Sócrates. Ele se inquietou com sua ignorância. Não porque ela em si lhe pesasse. Mas um dia perguntaram ao deus quem era o mais sábio dos gregos, e Apolo disse: Sócrates. Ora, Sócrates era ignorante, isso era tudo o que sabia. Sabia também que o deus não mente. Sua aflição começou aí. Quando o banal da vida foi sacudido pelo extraordinário. Foi o que nos ensinou: que a vida só tem sentido se se movimentar maravilhadamente entre o ordinário e o inesperado. Entre a repetição e o súbito.

Pensemos em Abrahão. Ele ouviu Deus, que o mandava procurar uma terra pacífica, onde um povo O honraria, e Ele o cobriria de bênçãos. “Sai da tua casa, da casa do teu pai”, disse Deus. E Abrahão foi. Certamente pensava estar apenas cumprindo uma ordem incontornável, vinda do Altíssimo. A quem veio depois, ensinou que a paz e a bênção estão sempre a caminho, no caminho, não podemos dá-las como favas contadas. É preciso sair sempre da sua casa, da casa do seu pai. Ir para o deserto e encontrar Deus.

Pensemos em Jesus. Ele soube que era o Filho de Deus, do Deus de Abrahão. E nosso irmão. E porque os pais amam seus filhos, e os irmãos deveriam se amar como o pai os ama, ensinou-nos isto: “Amem-se uns aos outros como o Pai os ama”. Foi daí que nasceu a ideia extraordinária de que “todos irmãos” significa todos iguais segundo o amor de Deus. E que em lugar de povos díspares devíamos criar uma humanidade única, filha do amor.

Poetas, filósofos, místicos, esses têm sido, para nós, os construtores da terra. Foi segundo o que extraímos deles — eles talvez não o soubessem, não o tivessem planejado — que ritmamos a nossa História. As nossas épocas. Em cada uma delas estivemos em casa e saímos de casa, porque tínhamos chão.

E hoje? Alguns nos dizem que tudo isso acabou. Nem a poesia, nem a filosofia, nem a mística são mais capazes de formular os nossos paradigmas de vida. Perguntam-se, as três, por coisas extraordinárias. Já não sabemos responder. Elas nos embaraçam. Seu tempo passou. O tempo do sentido, da busca, da transcendência. Essas coisas não vendem. Ninguém compra. — Dizem assim, e não põem nada nesse lugar vazio. O mercado, o consumo. Francamente, não é a mesma coisa.

Mas ainda existem construtores da terra. Uns que começaram a correr há cinco séculos ao lado da filosofia, saltaram sobre ela e puseram sobre a vida régua, compasso e relógio. São os cientistas. Vão ao fundo da terra, às entranhas do corpo, aos limites do cosmos. Sua aventura é de uma enorme beleza. São invejáveis. Descobrem doenças e remédios, quase veem a Criação, viajam pelas estrelas. Povoam o imaginário de quem ainda se detém para imaginar.

Mas agora, diferentemente dos anteriores, eles precisam saber o que estão fazendo. O que de fabuloso suas contas dizem a nós, encolhidos no canto, com medo de que nada faça mais sentido. Os que temos sede de extraordinário. Os cientistas precisam olhar para nós. E serem atingidos pela nossa fragilidade diretamente no coração.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)