Os assassinos do Sol
O Ocidente mundializou-se, o mundo ocidentalizou-se (23/01/2016)
* Leia no site dO Globo ou abaixo.
Tenho usado aqui e ali a expressão “assassinos do Sol”. E em geral com um dedo acusador ou triste apontado para nós, ocidentais, presunçosos senhores do planeta. Que agoniza — e nós com ele. Que parece ter perdido um rumo humano — e nós com ele. Que assiste à constituição de humanidades partidas, povos e continentes de segunda, terceira classe. O dedo acusador e o coração triste olham para o horizonte e veem o Sol se pôr. E pensam que pode ser pela última vez. Se for, terá morrido nas nossas mãos. Seremos nós, ocidentais, os assassinos do Sol.
O Ocidente é a Terra da Noite. É onde dorme o Sol. Esse que, para nós, se levanta no Oriente. Nós o recebemos de lá. E depois precisamos conduzi-lo de tal modo que, bem dormido, tenha vontade de se reorientar e voltar ao centro do nosso céu. É isso que está difícil.
Houve há quase dois milênios um processo de translações do Oriente (o de então, que incluía a Grécia) para o Ocidente latino. Translatio studii — a passagem do saber grego, judaico, bizantino e mais tarde árabe para a Europa romana. Daí floresceram centros de estudo, mosteiros, escolas, universidades que moldaram a cultura em que ainda nos reconhecemos. Translatio imperii — o poder se transferiu das velhas estruturas do Oriente para as terras da romanidade. Em decorrência, translatio mundi — o mundo passou do Oriente para o Ocidente latino. O mundo! E o Oriente entrou na sombra. Entrou no domínio do “fabuloso”.
Por isso, é assim que acabamos olhando para o nosso passado. Um rápido capítulo para os sumérios e acádios, medas e persas, assírios e caldeus; uma parada um pouco maior no Egito e na Palestina, por onde Roma andou; atenção especial à Grécia, onde Ocidente e Oriente se contraíram. E então Roma. Roma e a Germânia. Roma e as Gálias. Roma e as Espanhas. Roma e a Ásia conquistada, a África submetida. Roma, a Europa. E depois nós, europeus transplantados. Índia, Nepal, Ceilão, China, Japão existiam, claro. Marco Polo andou por lá no século XIII e nos contou. Os portugueses procuraram o caminho para “as Índias” (assim no plural, porque iam da Índia propriamente dita, a “próxima”, até o Japão e o mar da China, a “remota”). Mas o mundo, mundo mesmo, vivia aqui onde o Sol se põe. Na Terra da Noite.
Por força da hiperconcentração da riqueza e da financeirização das relações econômicas, o mundo mudou. Agorinha mesmo, já nas nossas vidas. O Ocidente, devedor das antigas translações, pela sua riqueza e poder tornou a pôr em cena o Oriente silenciado. O Ocidente mundializou-se. O mundo ocidentalizou-se. Chama-se a isso a globalização. Hoje convivemos com razoável naturalidade com esse processo. Somos nós que o guiamos, é mais fácil achá-lo “natural”. Para os orientais há de ter sido um sofrimento. Os velhos japoneses perplexos de verem seus netos saírem das orações no templo direto para as apostas na Bolsa. Um Japão ocidental. A China grande potência capitalista. A Índia país emergente... A Índia, antiquíssima civilização, sempre esteve lá, no lugar que era o seu; emergente ela é no mundo ocidentalizado. O nosso.
Pois, dizem por aí, é desse mundo que as experiências mais radicais das nossas origens europeias precisam ser desenraizadas para que a eficácia da globalização se produza sem contratempos. Imaginem só se continuarmos a nos preocupar com a essência inalienável da realidade: como haveremos de entender que a China não seja hoje mais do que uma taxa desacelerada de crescimento e uma queda nas importações? Se a paixão da verdade não nos abandonar, como haveremos de assistir, banalmente, ao xadrez do mundo, em que todas as partes roubam, pouca coisa é mesmo o que parece ser, e ganhar ou perder a partida é um segredo que só os jogadores conhecem? Nós, os jogados, assistimos bestificados aos lances que vão definir nossas vidas. E se, diante de uma narrativa qualquer — os motivos para uma invasão, as razões de um assassinato em massa, a explicação para a perambulação de pessoas perdidas pelo mundo que não as deseja —, insistirmos em conhecer os fatos, ficarmos obcecados com os seus fundamentos? Se, teimosamente, não quisermos abrir mão de sermos sujeitos das nossas próprias consciências, apesar dos espetáculos de massa e das simulações de rede? Nada funcionaria. O mundo globalizado, que precisa do overnight, porque à noite todos os gatos são pardos, uma Bolsa dorme e outra acorda, e as diferenças se atenuam, não pode tolerar essas invasões solares de sujeitos autônomos, apaixonados pela verdade e os fundamentos das coisas reais. Essa claridade solar é disfuncional.
Para eles, os senhores da noite. Os assassinos do Sol. Para nós é arma de guerra. Um modo de rir. É no nosso riso que se conservam a possibilidade da resistência e a sedução da esperança. Por nós, o sol nascerá. De novo: o sol nascerá.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)