Mais dois dias e acabam as minhas férias. Segunda às 11h reentro na minha sala de aula. E recomeça uma alegria de que me privei voluntariamente por um mês. Precisava muito descansar. Entregar-me ao ócio. Agora o ócio acaba. Mas não devia ser.
Talvez o mal-estar que temos com o ócio provenha lá dos começos da filosofia. Quando era preciso ser cidadão — homem e não escravo — para poder se dar ao luxo das conversas sem tempo para acabar. O ócio de quem não trabalhava era condição para o trabalho da filosofia. Filosofar era coisa de homens ociosos. Até hoje, quando queremos assinalar que alguém passa a vida na sombra e água fresca, dizemos que é uma pessoa ociosa. Meio filósofa. Quando temos pela frente um par de horas em que não estamos envolvidos em negócios, dizemos que dispomos de umas horas ociosas. E essa ideia nos deixa um pouco constrangidos. Não estarmos fazendo nada é meio vergonhoso. Estar no ócio é quase dizer: na preguiça. O negativo do ócio é o negócio. O certo é estarmos fazendo sempre um negócio, alguma coisa que preencha a vida e o tempo. Atravessamos a vida negociando. Fazendo negócios, estabelecendo condições de viver produtivamente, inventando coisas. Para o ócio temos as férias.
No entanto, o ócio é a condição para o silêncio necessário. Para a inação fecunda de que precisa a criação. Para fechar os olhos. Dormir mais, com certeza. Mas sobretudo sonhar e ver tudo mais claro. O grande poeta alemão Goethe, que era político e entendia de negócios, disse que o trabalho do poeta é o repouso. E é mesmo. O poema põe movimento verdadeiro nas coisas e na vida. Estamos tão acostumados a ver tudo no turbilhão do tempo que corre e das coisas que redemoinham que, quando o mundo para, para o repouso, e fica lento, mesmo imóvel, de repente, assustadamente, vemos a natureza real da vida. Se estivermos atentos. O poema é o rebento do susto e da atenção. Podemos, é claro, estar ociosamente alienados. Aí não tem jeito. O mundo desacelerou em vão, o repouso irrita, precisamos inventar coisas para ao mesmo tempo não trabalhar nem ficar sem fazer nada. Temos medo do ritmo baixo. O poeta não tem. Para ele, em repouso, a alegria vem devagar, sem relógio. E o poema vem devagar, com jeito de eternidade. O poeta é ocioso.
O filósofo também. A filosofia borbota em palavras, explode em tratados, aforismas e aulas. É loquaz. É o discurso por excelência. Gosta (alguns filósofos, os que se esqueceram do diálogo, gostam) de polêmicas. A filosofia é verbosa. Às vezes demais. No entanto, seu coração secreto é o silêncio. Quando os silogismos se calam, os raciocínios congelam, os paradoxos se envergonham da sua arrogância — aí, no silêncio, fermentam as ideias e as palavras. Que logo se dirão, quando o negócio da filosofia, que se dá em público, na praça, reabrir as portas. Mas, sem o profundo silêncio que reflete e germina, o negócio é estéril. É numa dessas horas de esterilidade que se pode inventar que a filosofia não tem mais o que dizer, deve-se calar. Deixou de ser um bom negócio. Estamos num momento desses, de “fim da filosofia”. Os sérios, que negociam com o tempo e a vida, têm declarado a filosofia um mau negócio. Que interrompa então sua fala compulsiva de “porquês” incessantes e faça silêncio. Não sabem, os sérios, que é do silêncio que ela um dia revirá. Será essa a sua salvação.
E há os místicos. Dos três que sabem reter e podem recuperar a graça da vida, esses, os que vivem na graça, são os menos lembrados. Talvez porque estejamos com os ouvidos atulhados de sermões televisivos e de místicas de consumo. Talvez porque suponhamos ter acertado nossas contas com a dimensão de transcendência que não cabe no corrido da vida contrarrelógio que veio a ser a nossa. Não combina com um mundo midiático, de intensa visibilidade, obscena presença ilimitada. Obscena: que ocupa a cena inteira, sem vazios repousantes. Ilimitada: que não conhece fronteira, fim dos cursos d’água, começo e fim dos desertos, limites das cidades, último quilômetro das estradas. Sempre veloz, sempre para adiante, sem repouso e parada. Manter tudo presente, visível, à mão. Usável. O que sobra, num mundo assim, para aquele cujo trabalho é fechar os olhos?
O místico sorri delicadamente para o excesso de haver coisas que não cessam de se mostrar e oferecer. Fecha os olhos em silêncio, dá-se ao ócio do silêncio que medita. E vê melhor. Fora do turbilhão, quando o mundo desacelera, o Sentido aparece devagar. Devagar, sem alarde. Por isso o místico fala pouco. No mundo acelerado que é o nosso há pequenos sentidos demais. Ver o coração das coisas e falar devagar é o ócio do místico.
E tudo isso é bom. Decido então que, sendo as férias o tempo do poeta, do filósofo e do místico, volto para as aulas em férias. Meus alunos entenderão. E isso talvez quase baste.