Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Aprender a esperança

Se ela se perder, o sol se põe para nunca mais (09/01/2016)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Ouve-se demais: Perdi a esperança. Com um mundo assim, que esperança se pode ter? A dos migrantes recusados? A dos que assistiram aos assassinatos de Paris? A do pai de Aylan, menino morto, entre a areia e a espuma do mar? A dos que sobreviveram, mas viram a morte da terra e do rio em Mariana? — Não deve haver esperança neles. Haverá coragem e desespero. Se for assim, é urgente reaprender a esperança. Se ela se perder, o sol se põe para nunca mais.

São Paulo disse aos Coríntios que, entre a fé, a esperança e o amor, maior é o amor. Ele experimentou sua força, viu nele o verdadeiro mandamento cristão. A fé é evidente. Sobra a esperança. Ela é difícil. Vai tanto contra as evidências! — Tudo morre, a guerra campeia: tenhamos esperança! — Parece um modo de dizer: conformemo-nos, é a incompreensível vontade de Deus. Para os cínicos de todo tipo, essa é uma forma de resignação. Esperar o quê, quando a luz apagou? — Mas não é. A esperança é a virtude dos corajosos.

Há às vezes alguma confusão. Ter esperança não é o mesmo que esperar. A espera tem objeto e mede-se pelo tempo. A esperança, não. Espera-se alguém que não chega. Essa espera tem objeto. E tempo: consulta-se o relógio. Vai-se perdendo a esperança de que ainda venha. A desesperança aparece quando o objeto da espera se afasta no tempo que passa. Abre mão do encontro, entrega os pontos. A esperança é teimosa. Não veio hoje, virá amanhã. É praticamente certo. Amanhã traremos lilases. Iremos comer as fritas de que ela gosta. Iremos ao cinema. Chove. Os lilases se encharcam. O bar das fritas fecha. Passa o último trem para o cinema. Ela não veio. Virá amanhã. Trarei lilases. — Jacques Brel compôs uma bela e triste canção para a espera de Madeleine — que não veio — e a esperança de que Madeleine virá. A esperança é teimosa e um pouco ingênua.

Por isso é tão malvista pelos calculadores de futuro. Os montadores de cenários. Neles não há lugar para valores que não sejam variáveis de contas. Mexe-se aqui — o dólar — e o futuro será um; balança-se ali — a China — e o futuro será outro. Em geral, catastrófico. Sem luz no fim do túnel. “Luz no fim do túnel” é como se chama a esperança quando tudo o mais é conta e esse valor imaterial não consegue virar número. E se não há luz, não há esperança. CQD.

Digo que não. A base da condenação aos “ingênuos da esperança” é a ausência de saída. Mas esperança não é reconhecimento de saída. É chave de entrada. A História começa a mudar quando a esperança entra nela. Nunca as coisas estiveram tão ruins, dizem-nos os “objetivos”. Estiveram, sim. Então para os escravos da antiga Roma a vida corria bem? Pois levantaram-se em insurreições. Podiam ganhar? Não era de se esperar. Mas tiveram esperança. E escreveram uma bela página da Roma republicana. Sua derrota alimentou de esperança as lutas dos humilhados por séculos. As coisas eram fáceis sob o regime feudal, quando as pessoas, servos da terra, valiam o que vale um boi ou um arado? Pois ergueram-se nas revoltas camponesas. Foram chacinadas, porque não era de se esperar que ganhassem. Mas a esperança com que se levantaram de longe alimentou a Revolução Francesa. Triunfaram os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade e as grandes ideias republicanas da Revolução Americana? As reformas constitucionais dos Estados Unidos (Constituição era coisa séria, contrato final de uma revolução) viveram da esperança de que sim. E depois dessas revoluções houve a soviética. Vingaram as promessas de igualdade que ela formulou? Houve engasgos com a liberdade, sem a qual não há verdadeiramente socialismo. Mas a esperança do socialismo sobreviveu.

Vivemos de esperanças. Só não as reconhecemos mais. Sempre que uma espera não tem objeto direto imediato e relógio marcando compromisso, a esperança pode emergir. E emerge. Teima em nos sorrir. Basta que não a calculemos. Heidegger, grande filósofo do século XX, lá um dia compreendeu que, num mundo convertido ao cálculo, tudo o que é da ordem do Ser, da Liberdade e da Verdade deixou de ser alcançável pelo pensamento e pela linguagem que herdamos dos velhos gregos. E passou a missão para os poetas. Porque o poeta não se precipita logo atrás de respostas, nem fica infinitamente formulando questões. Ele tem a serenidade de se pôr perto do Mistério e esperar sem compromisso de chegada. Não espera nada definido. Espera. O que vier ele canta. Serenidade. Essa é a virtude do poeta. Sem serenidade, como abrigar a esperança no coração?

Aí está: os serenos — os mansos de coração — herdarão uma terra limpa e fraterna. Não são os passivos da espera tola — a das megassenas da virada, a dos picos das Bolsas. A serenidade dá trabalho. Não vem de graça. É uma conquista. Pode levar a vida inteira. Mas é dela que estoura, como flor no cactus seco, a esperança que salva.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)