Céticos são os que duvidam de tudo. Não acreditam em promessas, juras de amor, boas intenções. Olham de banda a própria realidade, que corre sob seus narizes: é falsa. Política? É lama. Políticos? Bandidos. E, evidentemente, não lhes venham com conversas de Deus. Há uma fundamental arrogância entre os céticos. Duvidando de todos os sins, têm certeza de todos os nãos. Têm um pé atrás com a vida e o amor! São maiores do que a vida e o amor! Olham-nos de fora. É espantoso.
Mas os velhos céticos gregos, os do século III a. C, não foram rasos assim. Foram filósofos importantíssimos. As histórias da filosofia que olham só as ideias e sistemas os põem entre as escolas menores. Mas para uma que esteja atenta às atitudes, ao que estava realmente acontecendo enquanto os filósofos pensavam o que iam pensando, são fundamentais. Porque, justamente, ensinaram a duvidar. Hoje pensamos neles como os que diziam que nada pode ser sabido com certeza. E logo apontamos o dedo irônico para eles e gritamos: “Eis aí uma certeza! Eles duvidam de todas as certezas, menos dessa! Morrem do próprio veneno”. E, encantados com tanta inteligência, vamos tratar de sistemas sérios, com princípios, teorias, demonstrações e verdades. Sistemas dogmáticos. Os céticos, os verdadeiros, se ainda os houvesse, olhariam para nós entre irônicos e divertidos. Porque amamos os dogmas e não podemos ser incomodados pela dúvida radical. Coitados de nós.
A palavra grega skepsis, da qual deriva “cético”, significa “procura”. Os velhos céticos procuravam. Tinham a paixão da busca. Bem pensadas as coisas, esses foram os verdadeiros discípulos de Sócrates, o que só sabia que não sabia nada. E inventou a filosofia para dar conta da sua ignorância. Da nossa, da de todos. Da dos seus contemporâneos que supunham saber, e cuja arrogância ele desnudava em público, conversando. Foi a essa atitude da ignorância pedagógica que se chamou então a “ironia socrática”. Depois vieram Platão e Aristóteles, no século IV a.C., e inventaram grandes doutrinas e sistemas. É por esses que os conhecemos e reverenciamos como nossos maiores antepassados gregos. Pois foi contra eles que os velhos céticos bombardearam seu ceticismo. Seu libelo acusatório. Platão e Aristóteles tiveram certezas! Contentaram-se, num certo momento das suas vidas, com as ideias que tinham inventado. Satisfizeram-se com elas. Deixaram de ser ignorantes. Pararam de procurar. Ficaram sábios. Traíram Sócrates.
Foi isso o ceticismo grego, o antigo: uma vibrante chicotada antidogmática. Como é possível saber com certeza, se tudo que sabemos “de verdade” é a nossa ignorância? Todos os sistemas de certezas são, portanto, falsos na sua raiz. Não se pode demonstrar o erro das suas ideias. Não importa. Basta apontar o dedo acusador para os seus resultados: os sistemas que julgam saber entregaram os pontos, cansaram-se, ficaram autocondescendentes. Pararam de pensar. Quem sabe não precisa do pensamento. O pensamento é para os ignorantes nós, os ignorantes.
O que mais vemos hoje são os preguiçosos do pensamento. Uns porque sabem tudo, não admitem contradição. Os arrogantes da verdade. Pobre verdade! Outros porque sabem que é tudo bobagem, tudo falso, e não vão ser enganados por tudo isso que está aí. “Tudo isso que está aí” é o mundo todo, toda a vida... Mas eles, os céticos por preguiça, não se deixam enganar. É tudo manipulação, atrás de cada boa palavra há uma péssima intenção, tudo é da boca para fora, “quem não os conhece que os compre”. Triste divisa... Quem não os conhece devia ir procurá-los. Quanto a comprar... Sinal dos tempos.
Com os dogmáticos que sabem tudo não é possível conversar. Quem procura uma conversa busca uma iluminação, uma claridade que transvaze o opaco das certezas absolutas. O conversador é um alegre ignorante. Os dogmáticos não gostam dos ignorantes. E os céticos, por seu lado, detestam a vontade de verdade que conduz essa gente que não sabe e por isso procura. Não para ficar sabendo e se congelar nas arrogâncias, mas para agir, fazer coisas, construir passagens provisórias. É desses, os humildes, que se pode esperar que transformem o mundo. Porque não estão orgulhosamente presos a certezas, nem sofrem do mau humor dos que nem querem saber, dos que não estão nem aí. Os ignorantes estão aí. E se interessam. Procuram por toda parte, têm olhos para ver e ouvidos para ouvir. Não duvidam de tudo e não sabem nada. Procuram, procuram — e, porque procuram, se mexem, saem da letargia do muito saber e do muito duvidar. São leves. Pessoas interessantes, os que não sabem. Os ignorantes essenciais.
Esses, os verdadeiros céticos, alegres pelo muito que têm para procurar, podem salvar o mundo. Como que por acaso. Como quem não sabe o que está fazendo. Pelo gosto humilde de pensar.