Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Pequenino nasceu em Belém...

Estaria em casa em algumas igrejas abertas, não em outras (19/12/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Na noite de 24 de dezembro um bilhão de pessoas se curva sobre uma manjedoura. Ou se põe debaixo de um pinheiro com bolas e velas. E canta. Ceia com a família. Há rabanada, para quem pode. Missa do Galo. É a vigília do nascimento de um menino pobre que mudou o mundo há mais de dois mil anos. Pobrezinho mesmo. Nasceu entre um burro e um boi, num estábulo, deitado num berço onde ainda há pouco os animais tinham comido. Pastores vieram louvá-lo, houve uma estrela sobre seu nascimento. E todo ano nasce de novo. Todo ano. — E se em 2015 desistisse de vir?

Esse menino Jesus teria motivos para desistir. Veio trazer a paz, veio para todas as nações. Não mais os povos separados, com seus deuses e cultos, mas uma terra só, redimida do mal. Quis trazer a paz. E amou os pobres. Aos ricos ensinou a gratuidade não remunerada do amor. Converteu alguns a essa vida simples. Não discriminou ninguém.

Mostrou-se primeiro à mulher samaritana, à beira do poço de Jacó. Os samaritanos eram considerados, então, gente de segunda, entre a bela Galileia ao norte e a orgulhosa Judeia no sul, onde ficava o Templo. Pois foi para a samaritana que se revelou como a água que mata toda a sede. E ela compreendeu. Amou as mulheres, que são simples no seu amor. Receberam o que ele ensinava com doçura, não foram disputar com os sacerdotes, escribas e fariseus. Estavam atentas à verdade. E, pobre, viveu entre os pobres e doentes e famintos, sedentos e prisioneiros. Estava em casa com eles. Mas não idealizou a pobreza. Prometeu um Reino. Ensinou a rezar: “Venha a nós o teu Reino”. Não adiou o Reino para o fim dos tempos. “Venha a nós.” Aqui. Sempre que fazemos por merecer. Aqui, desde já, na direção do tempo definitivo da Eternidade de Deus. Aqui o lobo se deitará com o cordeiro. Fim da luta de classes da criação. Nenhum poder que não o amor e a luz do Pai.

Chamou Deus de Pai. Paizinho, Abba. Intimidade de filho, carinho de filho. Nunca Deus, o poderoso, foi tão delicadamente humano. Falava com ele — era um homem de oração. “A noite inteira esteve em oração.” A noite inteira! Hoje mal rezamos, de enfiada, um “Pai nosso” e uma “Ave Maria”, que são recitações. Oração, de coração aberto e silencioso — Deus não grita —, poucos sabemos.

Mas hoje encontraria a Humanidade dividida guerreiramente em nome de Deus. Que já não parece um pai. O Pai. Que é invocado para guerras “santas” sobre as quais o menino choraria as lágrimas mais tristes. E espantadas. Sem compreensão. E olhem que quando o filho do Pai não compreende, alguma coisa terrível se passou. A Humanidade pode ter-se desviado de toda transcendência. E ficado tratando de suas riquezas, suas fronteiras, sua pureza étnica, suas religiões de exclusão, seus espaços vitais. Há cantos tristíssimos do mundo em que o Menino talvez ainda reconhecesse sua manjedoura. Não seria bem-vindo nesses lugares, de onde os poderosos expulsam seus povos com guerras, estupros e perseguições religiosas. Mas ele está acostumado a viver junto ao perigo. Morreu por isso. Podia não ter ido a Jerusalém. Ficaria um bom pregador com seus ouvintes, faria seus milagres e morreria velho. Mas foi. Foi para morrer aos olhos arregalados do mundo. E ganhou. Criou uma Humanidade para o amor fraterno. Talvez hoje escolhesse nascer nas barbas do E.I. ou do Boko Haram. Ou entre os pobres das grandes cidades do Ocidente, que moram esfrangalhados nas ruas, e sonham só quando enfumaçados de crack. Ou entre os povos tão postos fora do mundo, onde não parece chegar a ternura de Deus.

Gostaria do Papa Francisco, que lembraria o outro Francisco, com quem gosta de andar de mãos dadas pelas estradas da Úmbria. Olharia com esperança para a sua Igreja? Ela se move devagar, é velha, tem dois mil anos. Mas se move. Vai ficando mais simples. Olharia com amizade para os cristãos dispersos, os que formaram outras igrejas e os que o procuram na simplicidade das origens e no amor dos humilhados. Estaria em casa em algumas igrejas abertas, não em outras. Teria muito para se espantar.

Terá. Porque à meia-noite do dia 24, quinta-feira, nascerá de novo. Para os que creem e os que não creem, que ele ama igualmente. Na noite do dia 24 ele terá descido, na barriga de sua mãe, da maior cidade árabe da Galileia, Nazaré, em direção à maior cidade judaica de Israel, Jerusalém, e no caminho, chegada a hora, nascerá na cidade palestina de Belém. Talvez pense, o teimoso menino, que essa proveniência, esse destino e o lugar da sua manjedoura bastem para levar paz a um canto tão triste do mundo.

Sobre ele os anjos cantarão hosanas. Nessa quinta-feira talvez pudessem dizer amém. Que assim seja. Se não, um dia talvez ele não venha mais.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)