Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Noite aturdida

A esperança sobreviverá à morte das flores e às velas que se apagam. E à banalidade da vida retomada (21/11/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Na noite de 13 de novembro, sexta-feira, as pessoas, quase todas jovens, que se divertiam em restaurantes e num concerto de rock na casa de música Bataclan, em Paris, foram executadas. Comiam, bebiam e cantavam. Homens atiraram das calçadas, invadiram o concerto e metralharam. Esvaziaram suas kalashnikovs uma vez, recarregaram, duas vezes, recarregaram, recarregaram. No Bataclan foram minutos intermináveis de terror. De execução cega. Porque as vítimas não eram ninguém, eram qualquer um. Estavam em Paris. Só isso.

O terror não escolheu alvos. Morreram porque eram jovens? Porque se divertiam numa noite de sexta-feira? Porque foram ao Stade de France? Fora do estádio três terroristas se explodiram. O presidente Hollande estava lá. Eles não visavam o presidente, nem chegaram perto. Visavam o jogo. Há anos já que Abu Musab al-Suri, ideólogo do “Estado Islâmico” — que não é um estado, nem é islâmico —, prescreveu a regra. Não atirar sobre pessoas identificáveis como alvos que façam sentido, como foram em janeiro os caricaturistas do “Charlie Hebdo”. Atirar contra o esporte, a diversão, a música. Na Europa, onde o capitalismo, diz ele, amolece. Essa que fez a revolução da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Valores burgueses, diz-se. Para nós, essa continua sendo a bandeira da mais generosa utopia ocidental. Que não tenha se realizado é justamente o que lhe dá sua qualidade de sonho. Atiraram no sonho. Dispararam sobre pessoas que celebravam a liberdade comum. Quiseram acertar o sonho.

Os atiradores do Bataclan explicitaram o motivo do ataque: estavam vingando seus irmãos mortos na Síria pela França. Traziam a guerra ao território francês. Lógica de guerra. Terrível, sem resposta que não a da própria guerra. Já começou. Mais bombas foram lançadas sobre Raqqa. O terror de todas as guerras. O das que enviam drones, o das que cortam cabeças. O das que se explodem dentro de ônibus escolares. O das que exigem conversão ou morte. Ou estupro. O Ocidente e o Oriente têm perpetrado essas infâmias contra a vida de crianças, mulheres e velhos que não estão no front das batalhas. Como as pessoas de Paris, na sexta-feira, 13 de novembro. E, embora corram por baixo da superfície petróleo e vontade de poder, as guerras têm sido conduzidas em nome de Deus. Lá e cá o nome de Deus dá bandeiras. Sobretudo à Al-Qaeda e ao DAESH, o “Estado Islâmico”. E ao Boko Haram. Todos eles em nome de Deus.

Há 40 séculos o patriarca Abrahão teve dois filhos. De Isaac descendem as tribos de Israel, dentro delas a casa de Davi, na qual nasceu Jesus. De Ismael provêm os muçulmanos. Um só ancestral, um só povo de irmãos. Mas, quando crimes como os da semana passada ocorrem, logo se faz a conexão perversa entre terroristas e muçulmanos, muçulmanos e árabes, árabes e orientais. E fala-se em choque de civilizações. Não há choque. A barbárie, de onde quer que venha, não encarna uma “civilização de Deus”. O Islã é uma religião de paz. Não há uma seita jihadista protegida pelo Corão. Como não há uma seita antipalestina à sombra da Torah. Nem um Partido da Inquisição à luz do Evangelho. Esses que agora atiraram longamente sobre Paris são fundamentalistas que perderam o uso comum da razão. Antes, perderam o coração que autoriza a usar o nome de Deus. Perderam o coração.

Paris reagiu. Apesar da interdição de aglomerações públicas, 20 mil pessoas estiveram no domingo na Place de la République. No mesmo silêncio impressionante de janeiro. Com seus cartazes dizendo “Même pas peur”: nem temos medo. Depois cantaram e desafiaram: “Vamos voltar ao Bataclan! Vamos voltar ao Stade de France!” A solidariedade já se organizara. #porteouverte, porta aberta. Quem se encontrasse na rua e precisasse de proteção consultava o Facebook ou o Twitter e encontrava um lugar para se abrigar. “Temos um sofá.” “Tem aquecimento.” “Temos chá e chocolate quente.” Logo se espalhou pelo mundo a hashtag PrayForParis, rezem por Paris. Flores e velas deram beleza aos lugares da morte. O grande órgão da Notre Dame tocou solenemente a “Marselhesa” durante a missa contra a violência, pela reconciliação e a paz.

O povo que inscreveu nos seus edifícios públicos Liberté, Égalité, Fraternité nos diz que o sonho não acabou. Que depois do pesadelo a vida retorna, e vence. A vida vence. Que ainda podemos sonhar com um mundo livre, igualitário e fraterno. Apesar da guerra, que vai escalar, e da política, que já iniciou suas manobras eleitorais sobre os corpos despedaçados. Na Place de la République nos afirmaram que os violentos não passarão, que voltaremos ao Bataclan.

Eu acredito. A esperança sobreviverá à morte das flores e às velas que se apagam. E à banalidade da vida retomada. A esperança não esquece. Mas não se envenena. A esperança espera. E quando há brecha, passa.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)