Essa expressão, tão comum, não parece conter toda uma atitude diante do mundo.
“Quer um café?”
“Não faço questão. Como você quiser.”
Ora, não é difícil saber se queremos tomar o café que alguém nos oferece. A incapacidade de decidir sobre coisa tão simples pode indicar algo maior do que uma hesitação. Pode ser indiferença. Anemia afetiva. Medo de se comprometer. Essa bem pode estar sendo nossa atitude, hoje, diante do mundo. Passiva. Que deixa correr. E isso é perigoso. O mundo pede emoção e inteligência. Espera que façamos questão dele. Eis a questão.
Questionar é uma posição diante do mundo e da vida que pode ter-se inventado na Grécia muito antiga, por volta do século VI a. C. Antes, nos tempos homéricos, a natureza, os humanos, os deuses, os animais andavam misturados, e talvez não fosse necessário pô-los em questão. O que é um centauro? É mistura de cavalo e homem. E uma semideusa? O resultado do amor entre uma deusa e um homem. E uma ninfa? O encontro do divino com a água. Sempre compostos. Uma coisa e outra. Não ou bem uma, ou bem outra. As duas. Só mais tarde, no século VI a. C., veio-se a criar a atitude que acabou sendo a nossa: “E pode? O que é deusa? O que é homem? O que é água? Cada uma sendo o que é, e só aquilo (veio a se chamar mais tarde “essência”), a mistura é possível? Não é. Ela destrói a unidade. E fazemos questão da unidade. Não abrimos mão dela. Fazemos questão do Ser”. Para nós, ocidentais, em cujas terras o sol todos os dias vem morrer, os noturnos, foi aí que se criou a metade grega do nosso DNA. Foi a partir desse momento que questionar se tornou uma obrigação do espírito. Na seguinte sequência: “Faço questão de que você venha tomar um café comigo. Não abro mão.” Só por isso, porque não abrimos mão, podemos, depois, pôr em questão todas as coisas, inclusive porque não abrimos mão. Antes de tudo, é preciso não abrir mão. Não deixar para lá. Não ser indiferente diante de nada do mundo e da vida. Nem mesmo de um modesto café. Essa é a mais básica das nossas atitudes de origem. É uma ética. É amorosa.
Vamos revisitar o velho Sócrates. Ele fez questão. Todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Era capaz de questionar a chuva e o sol eles mesmos. Porque amava a vida, e não era indiferente a nada que a afetasse. Não era assunto dele (é a outra metade do nosso DNA, de que ele não participa) que Deus mandasse o sol e a chuva sobre justos e injustos. Diante dessa afirmação, talvez perguntasse: O que é justiça? Provavelmente também: O que é Deus? Perguntava porque não queria abrir mão. Fazia questão de tudo, por isso podia questionar. No dia em que estava para morrer, condenado pela cidade de Atenas, conversou com os discípulos sobre a morte. O que é a morte? Sem medo. Fazia questão de morrer. Não chegou a dizer “a irmã morte”, a que muito mais tarde São Francisco haveria de sorrir. Mas também esteve sereno e à espera. Viria decerto ela, o fim de todas as questões. Até lá, porém, perguntar era viver. E viver é essencial. Morrer também. E fazer questão de um como do outro é um respeitoso amor.
Shakespeare também soube dessas coisas. “Ser ou não ser, eis a questão”, além de um bom verso com excelente efeito dramático, quer dizer: é preciso resolver isso, o príncipe não pode suportar por mais tempo a indecisão. Depois houve outros usos para a palavra “questão”, parte essencial da nossa história. Por exemplo: a Igreja católica no renascimento francamente violava a sua essência original, vendendo indulgências. O monge agostiniano Martinho Lutero pôs essa prática em questão. Fez questão da pureza originária da Igreja, que seu mestre Agostinho encarnara. Fundou, sobre esse questionamento, a dissidência protestante. E mudou o mundo. Outro exemplo, perverso: os antissemitismos europeus sentiam-se incomodados com a presença dos judeus no mundo. Os judeus carregam sua cultura incansavelmente, há 20 séculos, desde a diáspora do século I. Têm nela sua identidade. Fazem questão dela, ganham o direito de pô-la em questão. E irritam quem não faz tanta questão de nada. A esses os judeus incomodam, porque questionam infatigavelmente. Criou-se para esse incômodo a “questão judaica”. Não era questão nenhuma. Era uma sentença. Deu no que deu. Fazer questão, até uma dessas, falsa, nunca é sem consequências. Nessa atitude se jogam a vida e a morte.
Agora está em moda ter horror da política. Má ideia. Não que os políticos frequentemente não motivem repulsa e raiva. Mas esses sentimentos deviam, justamente, pô-los em questão. Deveríamos fazer questão da política. Ela é essencial aos povos da terra. Há no entanto, em número alarmantemente grande, os que não estão nem aí: “Política? Passo. Não faço questão.”
Melhor fazer. Há um mundo pendurado aí, que pode naufragar. Melhor fazer.