Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Direita e esquerda

Mas por que insistir nessa distinção que põe fel nos diálogos e transforma conversas em trocas de tapas? (10/10/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Não há mais esquerda e direita. E ideologia. Sobretudo essa história de igualdade social se tornou obsoleta. O mundo é outro. Vamos trabalhar — já ouvimos demais declarações dessas, desgostosas das críticas “de esquerda” à política e à economia. É uma tese. De direita. Que, essa, não morreu na queda do Muro. Mas na verdade essas posições são tão mais antigas! Vale a pena olhar para esses passados antes de dizer coisas tão peremptórias.

As palavras, esquerda e direita, vêm da Revolução Francesa. Quando, pela pressão do povo — o Terceiro Estado —, o rei se viu obrigado a convocar os Estados Gerais, a nobreza e o clero tomaram lugar à sua direita, e o povo, os comerciantes e artesãos, à sua esquerda. E ficaram assim, depois, na Assembleia e na Convenção. As palavras “esquerda” e “direita” têm essa referência espacial. Frágil. Mas as coisas que essas palavras nomeiam continuam no mesmo lugar que ocupam no mundo, e não cabem na sala dos Estados Gerais. São interesses. Legítimos. Mas opostos. “Esquerda e direita acabaram” deveria querer dizer: a oposição entre interesses sociais, políticos, desapareceu. Tudo encontrou seu equilíbrio. Essa é a tese do fim da história. O equilíbrio serve à direita. Parece que a direita não acabou...

Como assim, a direita não acabou?? Pois claro. Os interesses que congelaram a história no seu “fim” são os seus, pertencem à etapa mais refinada do capitalismo, a financeira. À globalização pelo consumo. O sistema bancário hiperconectado em escala mundial é o novo centro do poder. E a Bolsa (entidade abstrata mas realíssima) é o termômetro do mundo. Febre na Bolsa. A Bolsa congelou. E a temperatura do mundo oscila. A Bolsa gera pobres. E paira acima da política, que, mal ou bem (mais mal, infelizmente) encena a democracia. Há, portanto, interesses opostos. E segundo a posição em que cada um se ponha, e dependendo do modo como se põe nela, é-se de esquerda ou de direita. Ou alguma coisa entre, que também existe.

Mas por que insistir nessa distinção que põe fel nos diálogos e transforma conversas em trocas de tapas? Porque, se as palavras não agradam a ouvidos sensíveis e “modernos”, as coisas não só continuam a existir, como têm se agravado enormemente. Com quatro bilhões de pessoas fora do sistema do mundo não dá para brincar de semântica. É preciso falar sério, porque o assunto é sério. E olhar de perto.

Olhar de perto talvez nos leve a ver isto: se as coisas existem — os interesses divergentes —, dizer que as palavras que as têm nomeado já não têm sentido significa que as palavras já não representam as coisas. Não por inadequação semântica. Seria pouco e ridículo. Bastaria inventar outras. Mas porque, parece, a representação política acabou. Os interesses sociais não encontram mais canais para se expressarem na esfera do poder. Isso é o próprio da conjuntura pós-moderna. Os simulacros são só o que vale. Eles encenam um espetáculo. A esse espetáculo o “real” não é convidado. Mas se olharmos para a vida, ele está lá. O real tem fome. E raiva. O real se desespera. Não sendo convidado para a festa não tem representação. Como se não existisse. Há sem dúvida os que, de dentro, olham para o povo amorosamente. São mal tolerados, esses. Mas conseguiram entrar. Ainda bem. São pequenos fósforos de esperança.

Naturalmente, os organizadores da festa não são virtuais. São realíssimos. São aqueles cujos interesses não precisam ser representados. O espetáculo lhes convém, mas não acreditam na representação. Representar é ser autorizado por alguém. Eles não precisam de autorização, os organizadores da festa. São os donos da casa.

Pessimista? Estou olhando para o Brasil, para o parlamento atual. Tem um povo triste do lado de fora. E um espetáculo indecoroso dentro de salas quase secretas. “Dentro” e “fora” podem ser nomes novos para direita e esquerda. Os que estão dentro alegadamente para representar os “de fora” estão (com as exceções que conhecemos) trabalhando mal. Os outros não precisam representar ninguém. Já estavam dentro. Não pretendem sair.

Entre os que têm fome, raiva e desespero e os que se instalam tranquilos nos seus interesses triunfantes há uma multidão de perplexos. Não lhes ronca o estômago. Mas não decidem de verdade os seus destinos. É para eles que o espetáculo se encena. Para convencê-los de que está tudo bem. Eles têm a tendência a acreditar. Se não fica tudo escuro demais. Mas não estão dormindo. Quando um pedacinho de sol entrar no teatro vão ver que assistem a um espetáculo de sombras. E talvez não queiram mais. E resolvam subir ao palco e abrir as portas.

Aí começaria uma cena mais verdadeira. Tudo às claras. Não é impossível. O contrário, infelizmente, também não é. As duas peças estão sendo disputadas agora. Os guichês ainda estão fechados. As filas esperam.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)