Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

As três cores do mundo

Pela fraternidade não se fez revolução alguma (03/10/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Penso muito nos ideais da Revolução Francesa. Neles, há mais do que um projeto revolucionário. Há um programa para a humanidade. Humanidades não se forjam por projetos, nem se movem por palavras de ordem. Mas que seria belo, seria. Liberdade, igualdade, fraternidade. O programa para uma humanidade perfeita. Descontada a perfeição, que não está entre as nossas habilidades, que programa! — Não temos estado à sua altura.

Costuma-se dizer que a Revolução Francesa, como a americana, foi burguesa. Foi mesmo. Na França, a burguesia conquistou o poder político. Já tinha o resto. E, na América, a classe média aborreceu-se com o rei. Nasceram duas repúblicas. Burguesas, o que então não era defeito de fábrica. Marx, que entendia da matéria, ressaltou o papel civilizatório da burguesia. Mas é verdade também que, da bandeira tricolor, a liberdade predominou amplamente sobre as outras duas. Liberdade perante a lei não é pequena coisa. Protege os indivíduos, inclusive os mais fracos, dos arbítrios do Estado e dos mais fortes. Mas é uma liberdade formal. No fim das contas, protege mesmo os que, tomando o poder e cortando cabeças, já estavam livres.

Também se costuma dizer que a Revolução Russa, que se fez em nome da igualdade, amputou as liberdades públicas e ampliou as da classe dirigente. De fato, aconteceu. Tendo posto todas as suas fichas no projeto espacial e na corrida armamentista, a igualdade para os pobres veio junto com o racionamento. A União Soviética, como Cuba mais tarde, viveu em estado de sítio. Sitiada por fora, sitiou-se por dentro. Tinha saltado a etapa capitalista do desenvolvimento. Lênin criou a engenhosa teoria da ruptura do sistema pelo elo mais fraco e fez a revolução onde ela não estava pronta para acontecer. E vieram o socialismo em um só país de Stálin e o socialismo real que acabou encerrando essa aventura de esperança. Stálin traiu Marx. Fez uma História torta. Devemos aprender com ela.

Pela fraternidade não se fez revolução alguma. E, no entanto, é o valor mais radical. O que ele diz é que, sendo todos irmãos, somos todos iguais. Não é preciso que a lei o assegure. Iguais pela nossa comum humanidade. Mas também: como irmãos, todos diferentes. A igualdade, então, não se alimenta da uniformidade obtida por artifício político. Vive da explosão, que devia ser alegre, das diferenças. Quando se luta pela igualdade não é para conquistar a que não se tem, é para se opor à usurpação da que é conatural à nossa existência humana.

A mesma coisa para a liberdade. Se somos todos irmãos, diferentes e iguais, igualmente somos todos livres. Muito antigamente se admitiu que nascíamos naturalmente livres ou naturalmente escravos. Heráclito disse exatamente isso. Aristóteles também. Expressavam talvez os preconceitos e as violências do seu tempo. Passou. Somos livres porque somos humanos. Temos o poder de escolher. Queremos, não queremos. Só quem é livre pode não querer. Se as condições de exercício dessa liberdade são cerceadas, por razões de classe, gênero, cor de pele, preferências afetivas, limitações impostas por deficiências que não atingem a humanidade de ninguém — há usurpação. A luta pela liberdade é um movimento contra a usurpação. A liberdade, como a igualdade, não estão no fim da luta. Estão na sua base. São seu fundamento, o propriamente humano, que, na História, está sempre em vias de ser usurpado. Lutar contra usurpações é já meia vitória. Porque de cara se sabe onde está a justiça.

Isso tudo, claro, porque somos todos irmãos. Porque a fraternidade é o valor mais radical. É constitutivo. A liberdade e a igualdade podem precisar ser declaradas. A fraternidade, não: ela é a qualidade do que nós somos.

Haverá alguém para dizer que essa é uma conversa universalista. Que é preciso relativizar. Que a infibulação, costura dos lábios vaginais das meninas em certas tribos africanas, é horrível, mas faz sentido para aquela cultura, devemos respeitar. Que a democracia é um valor ocidental. Que há povos que não nasceram para ela. Que desejar para o mundo que as pessoas decidam sobre suas vidas é um projeto imperialista. Mas, desde que se entenda que democracia, para ser o que promete, tem de combinar representação eletiva com pressão social, minha miopia não consegue enxergar o feio imperialismo democrático.

A revolução da fraternidade, que derruba usurpações, é uma conquista. É positiva. Não é um universalismo eurocêntrico. A não ser para quem conceba que há uma parte da humanidade mais humana do que a outra. Ou decida abolir a ideia de humanidade. Mas aí... O que vamos fazer com quem ficou assim cego para os outros? — Não sei. É isso que temos para pensar.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)