Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Outras palavras

Vivemos imersos em imagens. Elas bombardeiam nossos sentidos, invadem nosso cérebro (26/09/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Já falei de palavras aqui. Elas me encantam. A função para que foram inventadas é de uma transbordante beleza: nomear o mundo. Uma criança entra no mundo por elas. Quando pergunta “o que é isso?” (é a pergunta da filosofia!), respondemos com o nome da coisa. Depois ela que se esforce para saber que coisa é esse nome. Nomes são as coisas que sabemos. Quando aprendemos uma língua nos dão logo os substantivos. É o “vocabulário”. Vocare é chamar. O que nos ensinam é como uma coisa se chama. Um nome. Num certo sentido, tudo é nome.

E no entanto as palavras estão caindo em desuso. Já vão apenas assinalando posições. Para uma comunicação mínima. Abreviadas pelo tempo hiperveloz. Vlw? Quer dizer, valeu? Flw #sqn. Gosto especialmente desse. Uso muito com os meus alunos. “Hashtag soquenao”. É bom para introduzir nas aulas sobressaltos dialéticos: vocês pensavam que era assim, não é?; só que não! Dito assim fica banal. #sqn é muito mais eficaz.

Vim tateando até aqui só para dizer essa palavra: “eficaz”. Palavras hoje precisam ser cirurgicamente eficazes. Dizerem logo a quê vieram. O sabor de rolá-las na boca pede um tempo que já não temos. E elas ficam lá, pedindo mais, estendendo mãos que pedem contato. #sqn. Tem outra informação entrando. Pode sair. Vlw? Imagens dispensam palavras porque elas estão perdendo a capacidade de dizer coisas. E quando as coisas não são ditas podem simplesmente não ser mais. Ou ser qualquer uma: um motel, um perfume, um banco, um jipe. E ainda há pouquinho fazia uma diferença abissal ser um perfume ou um banco.

E no entanto são tão belas! E misteriosas. Vêm do tempo em que Deus criou o mundo com palavras e o homem à sua semelhança: cheio de palavras. Foi a nós que Deus pediu que déssemos nome às coisas. Foi nosso primeiro trabalho. Pôr no mistério o que uma coisa é oferecendo a facilidade de chamá-la por um nome por cujo encanto ela vem a nós sempre que o dizemos. É mágica. Falamos, e a coisa vem. Deve ter-nos dado um tremendo orgulho. Porque um dia Deus achou que estava demais e embaralhou nossas línguas. Foi em Babel. Perdemos o pé completamente ali. Quando nos recuperamos, já havia uma certa estranheza entre palavras e coisas. Mas fomos levando, por milênios. Agora talvez tenhamos cansado. Talvez. Preventivamente, ponho aqui uma ressalva com jeito de esperança: #soquenao.

Quando conseguimos ficar quietos as palavras trabalham em nós. Podíamos fazer o exercício de tirar a roupa puída de palavras muito usadas, expor sua nudez. Garanto que ficaríamos mais alegres do que quando só as usamos para comunicar. Para abrir o apetite proponho duas: estética e farmácia. Palavras bem comuns.

Estética fala de beleza, que dá prazer. E tem o mesmo radical de anestesia, que fala de dor. A palavra grega aisthesis é raiz das duas. Raiz é o que dá vida. A vida do prazer e da dor tem a mesma raiz. Os gregos conjuntavam as coisas. Mostravam-nos assim (esquecemos) que oposições demasiadas são tolices de contabilistas. Farmácia é o lugar onde vamos buscar remédios, que nos tiram dores, restabelecem o prazer e resetam a vida. Seu radical grego é pharmacon. A mesmíssima palavra que diz “veneno’”. O veneno mata. Vida e morte estão penduradas na mesma palavra. Também não se opõem no modo da exclusão. Pertencem-se. Os gregos sabiam. Entendiam por exemplo a relação do sexo, afirmação gloriosa da vida, com a morte, dispêndio de energia vital. Regularam a economia do prazer sabendo dessa relação de conaturalidade. Em francês o orgasmo pode ser chamado “pequena morte”.

Tudo se enovela. Palavras não são designações operacionais. São sinais do mistério. Prazer e dor, vida e morte, felicidade e tristeza — tudo se enrosca na potência vital que nos trouxe até esse nosso tempo. Tudo é mais complexo do que o sim-ou-não informático deixa supor. Sim-ou-não são termos opostos, muito eficazes. As palavras que dizem a força são ambíguas, prestam-se a equívocos. É isso que atesta que ainda estão vivas. Vlw? Dizem por aí que por isso mais atrapalham do que ajudam. Precisam de regulação. Pode-se acabar com elas.

Só que não.

Vivemos imersos em imagens. Elas bombardeiam nossos sentidos, invadem nosso cérebro. Reparem nas propagandas. São em grande número de vezes narrativas imagéticas com legendas sonoras. Uma voz vai dizendo coisas que as imagens nem estão solicitando. São quase autônomas. Contam sua própria história, em torno do poder, da riqueza, do bem-estar, do uso livre do tempo. Têm sensualidade. São bonitas. E as palavras comparecem como coadjuvantes secundárias; e o real, o referente das imagens, só chega no fim. Pode-se fazer um jogo de adivinhação: é motel, é perfume, é banco! — Vai-se ver, é jipe. Jogo divertido. Mas oculta um desamor às palavras e à sua função de dizer coisas que poderiam preocupar os mais sensíveis.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)