Aylan Kurdi é um náufrago dos povos das águas. Daqueles que, fugindo das guerras, dos genocídios, das perseguições religiosas, da miséria e da fome lançam-se em barcos de esperança e desespero em busca de um porto bom. “Esperança” e “desespero” é como dizer: vão porque creem na vida e porque já não creem em nada. São paradoxos tristes sobre as águas. E vão iludidos. Os portos de vida não existem. Uns se fecham, apagam seus faróis. Outros entreabrem um canal estreito, um campo de gente segregada no espanto.
Para os que chegam o Ocidente olha como se não os visse. Enxerga problemas de espaço e orçamento, saturação do mercado. Não vê as pessoas que sofrem. Há, claro, a importante ajuda humanitária. Mas ela não organiza a solidariedade. Distribui água, pão, cobertor e remédio. Mas não pode esperar nada dos poderes que calculam. E não pode fazer nada pelos outros, os que não chegaram. Os que foram amortalhados no mar. Onde? Ninguém saberá. Não há vida mais que conte os sonhos e os pesadelos. Aylan Kurdi foi desses. Não chegou. Sim, chegou, a uma praia que não era seu destino. Sim, que era seu destino. Horrível destino. Aylan Kurdi naufragou. Mas não ficou no mar. Sua mortalha foi de areia e espuma, jogado como um destroço desengonçado às nossas vistas. Virou fotografia. Está como imagem atrás das nossas retinas cheias de horror. Tinha três anos.
Seu pai disse: “Meus filhos escorregaram das minhas mãos”. Nem consigo imaginar esse terror. Disse também, depois de ter enterrado mulher e filhos, que agora não tinha mais o que fazer na vida: sentaria e choraria, até que a morte viesse para ele também. Iria encontrar uma irmã no Canadá. Hoje, sentado sobre túmulos, perdeu todas as bússolas para qualquer navegação.
Há, então, esses também: os que voltam, mas já não adianta. Partiram talvez com esperanças. Voltam mortos, esvaziados de tudo. Aylan foi carregado nas mãos de um soldado que levava o pequeno corpo como um graveto partido. Foi fotografado pela câmara da repórter que cobre essas desgraças, e chorava enquanto clicava o corpo na areia, lambido pelo mar que o matou. Que o executou. A culpa não foi do mar. Foi dos que ficam em terra firme, pessoas sem aventura, calculadores de orçamentos emergenciais, fixadores de quotas. O presidente da Hungria admitiria católicos. Muçulmanos, não. Muçulmanos deformam a identidade europeia. Gente assim produziu as ondas altas. Aylan naufragou no desamor. Foi fotografado por uma consciência triste e já se transformou em espetáculo. Está na internet. Virou imagem. “Viral”, dizem. Corre o mundo. Mas Aylan Kurdi está morto. Agora é só uma imagem. Terrível. Fotografa a ausência de uma vida que não ultrapassou três anos. As mortes de crianças sempre comovem o mundo. Quanto tempo durará a comoção da imagem de Aylan atravessado na areia da praia do seu destino, com um pano lançado em cima e a ponta do mar lambendo seus cabelos? Imagens, dizem, valem mil palavras. E palavras valem quanto? Quando só temos palavras para fazer silêncio e chorar? Um canto triste composto para Aylan Kurdi, que tinha três anos e morreu na praia, nos daria a esperança de que não morreu para sempre?
O menino deitado na beira da praia
é o destroço de um barco que sumiu nas águas,
salgado de tristeza.
Barco de esperanças em farrapos,
encharcadas pelo vento mau.
A espuma do mar, de súbito calado,
lambe seu rosto mansamente,
como um cão que velasse o dono adormecido.
O menino deitado na beira da praia está morto.
É pequeno, uma criança talvez alegre,
que um dia brincou.
Agora nos assombra. Mãos desamorosas,
braços derreados, corações omissos
o jogaram nessa praia de agonia.
Temos medo de que sejam os nossos.
O menino deitado na praia
aponta seu pequeno dedo morto
para a nossa consciência.
O que havemos de fazer com esse corpo?
O silêncio da resposta aterroriza.
Ainda maior do que a morte
do menino deitado na beira da praia.
Deus olha para ele com imensíssima ternura.
Para nós sobraram a revolta, o nojo e o medo.