Heráclito de Éfeso (VI a. C.) foi um dos criadores do que depois levou o nome de filosofia. Dos primeiros a se inquietar com o ser, o homem, o mundo e a verdade, essência do que logo depois Sócrates, Platão e Aristóteles instituíram como uma disciplina feita para se ensinar. Mas nesse intervalo — dois séculos — Heráclito veio a ser descartado. Quando Platão, no IV, precisou de um patrono para a filosofia, não olhou para ele, olhou para Parmênides, seu contemporâneo, e os entendeu como adversários. Não devem ter sido. Mas foi o que Platão viu e nos ensinou.
Parmênides, o pensador da estabilidade, do “ou bem é, ou bem não é”, da eternidade e imutabilidade do ser servia bem a Platão. Melhor ideia fundadora ele não podia imaginar. E ainda radicalizou ao pôr Heráclito como o mestre dos sofistas, pensadores “malditos” do século V a. C. que lhe eram perfeitamente estranhos. Heráclito perdeu.
A grande filosofia que tivemos, depois da apropriação de Parmênides por Platão para fins de luta com os sofistas, com que Parmênides nem sonhava, foi centrada sobre os princípios de identidade e não-contradição: uma coisa é o que ela é, e nunca outra — as essências das coisas se excluem; a nada se pode atribuir uma qualidade e sua contrária ao mesmo tempo. Tudo isso foi por uns 24 séculos, até o nosso, perfeitamente claro. Como poderia algo ser e não ser? Ser igualmente de um modo e do modo oposto? Obviamente, não poderia. “Obviamente” significa: como escolhemos Parmênides, e não Heráclito, é óbvio que... e segue-se a fileira das certezas decorrentes dessa escolha. Heráclito teria outras coisas para nos dizer. E se tivesse sido possível escutá-lo desde o início, seu dizer teria podido fazer muitas coisas por nós. A começar por nos fazer profundamente diferentes do que somos, viemos a ser.
Heráclito ensinou a natureza benfazeja das tensões. Não procurou pacificar as diferenças entre as coisas, os homens e os deuses. As diferenças e suas tensões são boas. Mostram o dinamismo da vida, que não é lisa e uniforme. Havia para ele um princípio que nos dava a ver toda a variedade dos modos de ser do mundo. E esse princípio era o de que o que há de mais constante é a mudança. Tudo flui. O fluxo é a lei do mundo. Nada é só o que é. Tudo é também outra coisa. Dessa dinâmica de tensões é que se fazem o mundo e a vida.
Dizia coisas assim: se quiserem saber o que é música, não procurem “a música”. Busquem a tensão entre arco e lira. É nela que a música se faz. Dizia também que nas águas de um mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos. Como assim?? Simples: o rio corre, é dos rios correrem. E nós mudamos, é o sinal da nossa humanidade. Então, quando entramos num rio, ele passa — e, se entramos em um, não saímos do mesmo. E nós, que entramos, não somos os mesmos que saímos. Entramos e não entramos, somos e não somos. Disse Heráclito, e logo foi esquecido.
Dizia também que o divergente e o convergente concordam. Não porque um ceda e “dê razão” ao outro. Concordam segundo a guerra, quer dizer, a diferença. Mas também pela mais bela harmonia: a unidade dos contrários na paz. Mudar e ficar igual não se opõem: o fogo, sua metáfora de ser, só fica igual a si mesmo, só é fogo, se permanentemente estiver em mutação. A transmutação é o repouso do fogo, é o que o fogo é.
Se tivéssemos podido ouvir Heráclito, não teríamos construído civilizações de exclusão. Cristãos, judeus e muçulmanos não se guerreariam, porque veneram o mesmo Deus, que é igual e diferente para as três religiões. As diferenças seriam nossa riqueza, não nosso pecado. Não teria havido Cruzadas. O Holocausto não teria sido imaginável. Os palestinos teriam terra ao lado dos judeus. Não haveria o Estado Islâmico explodindo as identidades do passado e inventando no horror uma face assustadora. Quem sabe não teríamos banalizado as guerras como meios de se resolverem problemas de identidade entre nações. Talvez a noção hiperexcludente de “Estado” não teria tanto interesse. E a liberdade das mudanças geradoras de mais vida seria capaz de dar doçura aos sonhos de fraternidade e igualdade. Pode ser que a semelhança com os outros fosse mais bela do que a solitária identidade consigo mesmo.
Heráclito foi redescoberto no século XIX. Está em fase de reconhecimento e (pouca) valorização. Podíamos nos dar como tarefa limpar um fragmentinho dele por dia, e aprender um modo novo de entender que o diferente e o igual se pertencem. Ele ficou 26 séculos impedido de nos dizer sua sabedoria. Mas por isso também não envelheceu. Pode ainda nos incendiar, fazer alguma coisa nova por nós. A começar por nos permitir entender a tolerância. Todo o resto viria depois.
Com tão alta bandeira, pode-se ainda falar no fim das utopias e das esperanças?