Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

... e a Mística

A mística aponta para o mundo na sua dimensão opaca, mas realíssima (22/08/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Tenho dito: a inquietação da verdade e o espanto da beleza hão de salvar o mundo. Mas não se oferecem de graça. A filosofia e a poesia são o seu trabalho. Depois de prontos, o poema e o raciocínio parecem coisas a serem usadas. Não são. São pedaços de transcendência. Assinalam nosso desejo de mais do que nós mesmos. Nós e o mundo somos pouco. A inquietação e o espanto nos permitem transcender e inventar um mundo em que estejamos mais em casa. A transcendência é o tecido da filosofia e da poesia. Mas também o da mística.

Quando ouvimos “mística” pensamos logo em pessoas rezando. Em religião. As religiões são mesmo mais abertas a essa experiência. Porque dedicam-se à preparação ou espera do que excede os limites em que vamos vivendo. Deixemos essas pessoas ajoelhadas, é uma atitude digna diante do mistério. E vamos ver se pessoas que não têm o hábito de rezar quando encontram o misterioso também não são capazes da tensão mística.

Parece que sim. Muitas pessoas que estão insatisfeitas com o mundo e procuram nele uma dimensão oculta aos sistemas de ser, pensar, dizer e poder, para se puxarem por ela para cima e para fora, serão místicas. E não precisam ser pessoas religiosas. O que não pode lhes faltar é o sentimento de um oculto mais verdadeiro — e a esperança. Parece pouco. Não é. É toda a diferença entre sofrer conformadamente e, em desconformidade com o simplesmente dado, ansiar por um ar novo, mais puro e maior, que dilate os pulmões como o primeiro que respiramos na vida, e, justamente, nos fez viver.

Olhemos para a palavra. De novo. As palavras sempre vêm em nosso socorro quando estamos em pane de sentido. Mystos é o radical de “místico”. Significa fechar os olhos. Não para não ver. Nem para olhar “para dentro”. Mas para ver melhor. Os místicos percebem que a realidade não tem só a dimensão com que se apresenta aos nossos olhos e ao toque das nossas mãos, mesmo quando através de grandes telescópios e manipulações robóticas. Essa dimensão é importantíssima, claro. Sem ela não temos a realidade por perto. Mas é pobre. O mundo, a vida, são tão complexos! Os místicos sabem disso, fecham os olhos para não verem demais o manifesto. Para os abrirem sobre o oculto. Amam o mistério. Os mistérios simples. O misterioso pequeno que acompanha o ser de todas as coisas, sentimentos e relações. Como o amor, por exemplo. Os que não fecham os olhos procuram as determinações genéticas do sentimento amoroso, sua localização no DNA. E é uma busca altamente importante. Ou querem encontrar as condicionantes sociais do amor. E as encontram, e é bom. Mas quem vive a experiência sabe que ela muda a vida. E é tomado por ela. Essa é uma dimensão transcendente em relação ao real simplesmente dado, genético ou social que seja. É mais do que. — Assim também a fé, e outras situações extremas da vida.

Pensa-se logo em religião porque é nela que se dá mais visivelmente a emoção mística. Santa Teresa de Ávila experimentou a dissolução no divino. E depois, “de volta”, não pôde descrever essa experiência. Escreveu textos arrebatados, profundamente sexualizados. Foi o que encontrou, entre o ordinário e o extraordinário. São Tomás, depois de uma crise mística, considerou toda a sua obra apenas palha e vaidade. São João da Cruz achou o caminho da poesia. Nela cantou a ocultação e a revelação do Amado, Deus. Buda, que não pensava em Deus, experimentou o êxtase na iluminação vazia de coisas e deuses — mas fora da série do comum. Exemplos religiosos? Mas há outros. Einstein, que não era especialmente religioso, quando defrontado com a física quântica, que exigia um grande acolhimento ao acaso, uma destruição da ordem oculta do cosmos, não a aceitou, porque “Deus não joga dados”. E “o Senhor é sutil, mas não é malicioso”. Buscava o princípio único regente de todas as coisas. Morreu sem encontrar, mas ainda procurando essa lei maior do que as interações da matéria. Foi um místico. Quando apareceu a hipótese do big bang para dar conta de um universo vindo de nada, houve quem dissesse: “Chamem de Deus, se quiserem”. Hoje o big bang sofre contestação. O universo seria eterno. Teria o tempo que atribuímos a Deus. Uma metacosmologia está em gestação, porque a cosmologia simples não dá conta de uma coisa tão extraordinária.

Religiosa ou não, a mística aponta para o mundo na sua dimensão opaca, mas realíssima. Sempre aí. É atentos a essa dimensão que poderemos construir um outro mundo possível, futuro. Fechando os olhos para ver o extraordinário. O futuro é extraordinário. É uma dimensão transcendente da nossa vida. Acolhe o nosso desejo mais generoso. O desejo do futuro é uma poderosa experiência mística. Não podemos abdicar dela. Outro mundo é possível. É só fechar os olhos e ver.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)