Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Felicidade dá trabalho

Se queremos recuperar a potência que a vida vai perdendo, precisamos andar com quem não abriu mão do trabalho de ser feliz (01/08/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

A felicidade é coisa muito séria. Ser feliz é complicado. Envolve um modo de estar cheio de deuses (esse é o sentido da palavra “entusiasmo”) que dura, torna-se a surpreendente qualidade de alguém. Estar feliz aqui e ali se vê. Ser feliz é como ter sido tocado por um milagre. Não é, talvez, natural. Dá trabalho.

A filosofia, desde Sócrates, propôs-se a fazer esse trabalho. Pessoal, de cada um sobre si mesmo. A filosofia era então uma disciplina de vida. Um aprendizado de felicidade. Sócrates perguntava na Ágora: você tem cuidado de si? Tem-se empenhado em conhecer suas paixões? Se não, como espera governar a cidade e fazer felizes os cidadãos, deixá-los melhores do que eram antes? Cuide-se. Não basta estar satisfeito consigo mesmo. Se você não tiver aprendido a viver segundo a justiça, a verdade, a beleza e o bem será apenas um tirano. Julgará natural ter mais do que os outros. E não é. É resultado da sua ignorância sobre si mesmo. Você não será feliz. Terá prazer. Mas sua alma não irá para as Ilhas Bem-Aventuradas. Irá para o Tártaro. Não será imortal. Mas eu posso ajudá-lo. Ser seu mestre no caminho de procurar a felicidade. Porque eu procuro também.

Depois dele, Platão e Aristóteles não descuidaram da felicidade. Mas começaram a pô-la não em um incerto lugar, a ser buscado, mas em um lugar certo, a conhecer. A felicidade foi deslocada para o plano do conhecimento. E as coisas começaram a desandar. Não de uma vez. Platão tinha na cabeça a cidade ideal, em que todos possuiriam a felicidade porque os reis seriam filósofos. Mas não a guardou para si. Foi a Siracusa, na Sicília, tentar convencer o tirano Dionísio das vantagens de um povo feliz. Dionísio se aborreceu e o vendeu como escravo. Um bem-vindo resgate lhe permitiu fundar a Academia, e ensinar em vez de fazer. Aristóteles também pensava a felicidade como valor supremo. Fundou o Liceu, e ela virou matéria de currículo.

Mas houve escolas menores, que não se esqueceram de Sócrates. Principalmente, houve os cínicos. Esses acreditavam que a felicidade pode ser aprendida, desde que nisso se empenhe tudo, alma, coração e corpo. Antístenes, o fundador da escola, foi discípulo de Sócrates. O único verdadeiro, assim se descreveu. Porque não se satisfazia com sábias discussões sobre o valor da felicidade: procurava-a vivendo. Não permitindo que lhe dissessem o que é ser feliz. Os cínicos andavam com muito pouco, uma túnica surrada, não raro suja, e um bastão para apoiá-los no caminho. A felicidade pede que se bote o pé na estrada. Foram mal vistos. Perturbavam os bem-pensantes. Não propuseram doutrinas. Estiveram por ali um tempo, o tempo passou, acabaram. E a felicidade seguiu sendo buscada onde provavelmente não estava. Bibliotecas foram escritas sobre ela. Mas bibliotecas podem ser tristes. Sócrates acabou reverenciado como o fundador da filosofia, a mais teórica das disciplinas. E assim ficou até há pouco.

Hoje andamos precisados dele. A roda girou, a filosofia nos cansou com suas lógicas descarnadas. Nietzsche, no século XIX, distribuiu marteladas nela e na moral, que nos afastam da felicidade, nos tornam rebanhos tristes. Nietzsche detestava Sócrates. Ironias da história. Hoje precisamos desesperadamente dos dois. Porque tudo o que Sócrates quis evitar está circulando aí pelo mercado. Já não pensamos que é fundamental cuidarmos de nós mesmos para nos conhecermos, aprendermos a viver com os outros e sermos felizes. Não distinguimos felicidade de prazer. Ficamos satisfeitos com as coisas que consumimos com avidez. Mas ser feliz não é o mesmo que estar contente. Já não sabemos a diferença. Gozar, fruir, isso é hoje a receita da felicidade. Depois o gozo acaba e ficamos vazios. Mas é assim, é a vida, filosofamos no divã. Enquanto isso a vida corre lá fora.

Precisamos voltar a trabalhar. Todas essas coisas se passam nas nossas vidas comuns. Aquelas, intransferíveis, que só nós mesmos somos capazes de experimentar. Nelas os imperativos de consumo e superficialidade só entram se deixarmos. Não são uma fatalidade. Nada nos obriga a eles, irrefletidamente. Nenhuma lei encerrou a possibilidade e o gosto de cuidarmos de nós. Há de ser apenas um momento da História. E a História, somos nós que a fazemos. Cada um saberá. Não há receitas, salvo a de procurar quem somos, e agirmos de acordo. Não deixemos que nos moldem. Difícil? Claro. O mais difícil. Foi para Sócrates. Mas ainda há quem o faça. Os poetas, os filósofos que não adoeceram de lógica, os místicos. Os amigos da felicidade andam por perto. Os que não desistiram. São com certeza pessoas muito simples. Se queremos recuperar a potência que a vida vai perdendo, precisamos andar com quem não abriu mão do trabalho de ser feliz. Ainda está em tempo. Mas é preciso começar já. Agora. Neste sábado, se der.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)