Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Sobre filósofos e poetas

A filosofia aprendeu a decifrar enigmas. É pouco. Ela tem um encontro marcado, de novo, com o extraordinário (25/07/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

É comum dizer-se das pessoas que veem coisas invisíveis aos olhos da cara, e refletem para adiante do imediatamente dado, que são poetas, são filósofos. Exclamativa e reticentemente: “é um poeta...!”, “é um filósofo...!” E depois, ajustadas as contas, os sérios e ponderados vão adiante com as coisas úteis da vida. E deixam os filósofos e poetas no seu lugar nenhum, nas nuvens, no mundo da lua. Porque a terra tem donos, e eles não se contam entre esses. Um desdém meio bruto, meio condescendente. Deve ter um sentido. Houve um tempo em que os poetas cantavam o presente, o passado e o futuro. E eram amados. E os filósofos buscavam a verdade, a felicidade e o bem comum, e eram reverenciados. Caíram um bocado! Não é, à primeira vista, uma queda óbvia.

Os filósofos são tocados pelo espanto. Foi o que Sócrates nos ensinou. O mundo, o ser, dão a pensar. Porque, no meio de tanta diversidade, saber coisa por coisa, a essência de cada uma, é trabalho sobre-humano. Os deuses precisam acudir à ignorância dos mortais. Os poetas se movem pelo emaravilhamento. Tudo está cheio de mistérios. O coração da beleza é o que não vemos. Os deuses talvez vejam. Thales de Mileto, que passa por ter sido o primeiro filósofo, quando eles ainda usavam as palavras para encantar, disse que tudo está cheio de deuses. No mesmo século VI a. C., Heráclito de Éfeso recebeu uma delegação de efésios interessados em ver como vivia um filósofo. Encontraram-no cheio de frio, enrolado à beira do fogo. E iam embora desolados por aquela banalidade. Heráclito teve pena e os chamou: “Entrem, aqui também se dão os deuses”. Poetas e filósofos sabiam então que nada é verdadeiramente ordinário se não for também extraordinário. Se não estiver fora da ordem banal. É isso que produz o espanto e o emaravilhamento. O pensamento que escava e o poema que brilha.

Os poetas cantavam origens. Narravam histórias de começos, como Homero, na “Ilíada”, conta o início da Grécia, e Hesíodo, na “Teogonia”, o fazer-se do mundo e dos deuses. Também os filósofos buscavam a origem, o elemento irredutível de todas as coisas, o arcaico. A água, disse Thales. Heráclito disse: o fogo. Não importa. Todos queriam o primeiro, o mais radical, o extraordinário que do escondido preside à ordem. Andavam, poetas e filósofos, de mãos dadas.

Depois deixou de ser evidente o parentesco do espanto e da maravilha. No século IV a. C., quando imaginou sua República, em que os reis seriam filósofos e os filósofos reis, Platão não reservou lugar para os poetas. Baniu-os. Nem para Homero ficou uma humilde morada. Todos fora. Porque eles misturavam deuses e homens, natureza e deuses, homens e animais. Cediam ao falso, à mentira. Nesse momento, o espanto dos filósofos já se deslocara do mundo para a verdade, para o terror de podermos passar a vida inteira no engano dos sentidos e no erro da razão. Esse novo espanto precisava ser tratado com bons métodos racionais, ou desandaria. E a maravilha dos poetas distrai dessas coisas sérias. Devagar a poesia foi deslizando para os saraus e o entretenimento. Um fazedor de versos era tão criador de coisas que ainda não existiam quanto um artesão de sapatos. Eram, na linguagem da época, “técnicos”. Com uma diferença, no entanto, fundamental: os sapatos são úteis, os poemas são apenas belos. E a antiga boa companhia que se faziam os poetas e os filósofos desabou. A Razão tomou o poder. Fez excelentes coisas, sem nenhuma dúvida. Excelentes. Mas perdeu encanto na mesma proporção em que ganhou eficácia.

Mas não para sempre. Com o passar dos séculos a filosofia, despoetizada, foi-se fechando sobre si mesma. Descolou-se da vida. Platão ainda lhe deu um endereço vital, o Bem comum, a cidade, a política. Os estoicos, epicuristas, cínicos e céticos que vieram depois a voltaram para a busca da felicidade. E os cristãos por longos séculos pensaram, escreveram e ensinaram para a maior glória de Deus. Na época moderna, dos séculos XVI/XVII em diante, a filosofia começou a precisar dar conta de si. Voltou-se para o próprio umbigo, porque as novas ciências entraram para disputar o lugar de conhecedoras da vida e do mundo. E a filosofia, descarnada e sem sangue, bem pode estar mesmo acabando no nosso tempo. Mas o pensamento que se espanta, não. Está no nosso DNA. A pergunta pelo sentido das coisas é a nossa, é a que nos dá a identidade que continuamos mantendo.

Mas a poesia precisa voltar. Porque ela olha o misterioso. A filosofia aprendeu a decifrar enigmas. É pouco. Ela tem um encontro marcado, de novo, com o extraordinário. Ou morre mesmo. Quem sabe um dia, não muito longe, poderemos ouvir “é um poeta!”, “é um filósofo!”, e não haverá mais ironia condescendente nessas exclamações? Alguma gratidão? Quem sabe?

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)