A filosofia nasceu em Atenas no século V a.C. de Sócrates. A democracia também nasceu em Atenas, no final do século VI a.C de Clístenes e no V de Péricles. Pouco mais velha do que a filosofia. O suficiente para lhe dar umas lições. E a maior foi o respeito à verdade. Democracia e filosofia se sustentam no amor à verdade. E a verdade só se encontra, ensinou Sócrates, na conversa com alguém interessado nela, no trabalho comum.
Se cada um dos participantes de um debate filosófico não estiver profundamente convencido de não saber tudo, a verdade não aparece, refém da arrogância. O trabalho de Sócrates consistia em reduzir o companheiro à sua salutar ignorância. E então bastava afastar os preconceitos e cultivar a boa-fé. E cuidar cada um de si, conhecer-se bem o suficiente para que entre o não-saber das coisas e o saber de si mesmo a verdade florescesse como uma flor no asfalto. Com a democracia foi a mesma coisa.
Atenas conhecera a oligarquia aristocrática, que deixava fora da vida da cidade os pobres, artesãos, trabalhadores dos campos, e a tirania, que acrescentou ao regime anterior a força necessária para manter esses excluídos reféns do medo. As grandes crises sociais sob esses dois regimes permitiram a Clístenes introduzir, e a Péricles aperfeiçoar, um regime político em que o povo se reunia na Ágora, a praça central de Atenas (não tinha então o bonito nome de Sintagma, união, que hoje tem), para deliberar sobre os assuntos da cidade. Fazer política, verdadeiramente, começou assim. Com a presença do povo na praça.
Claro, o regime não era perfeito. Nenhum é, quando o poder está em cena. Escravos não eram cidadãos. Mulheres não votavam. Cidadãos eram os homens livres, independentemente de fortuna ou posição. (Limitações que só há pouco, no Ocidente, foram removidas. O voto dos escravos — o voto dos negros — e o das mulheres não vieram antes do século XX.) A democracia, apesar das suas limitações, pôs o povo na praça. Isso não é retórica. Todos os dias os cidadãos simples estavam lá. E discutiam seus interesses. Onde mais o fariam, senão no aberto e na luz? Ou outros decidiriam por eles, fechados e sábios. Atenas quis a liberdade que decorre de, muitos reunidos, cuidando de si, acabarem por encontrar a verdade de cada situação, que os muito sábios, ignorantes de vida, supunham encontrar neles mesmos porque presumiam saber mais. Sócrates ensinara que não. Ninguém sabe da verdade mais do que a consciência de não possuí-la. É assim que começa a sua busca, na mesma Ágora, inquirindo filosoficamente os mesmos cidadãos que daí a pouco iriam se pôr em assembleia.
Sócrates foi profundamente democrático. Quando seus inimigos o acusaram de tirar a fibra da juventude, ensinando-lhe a sempre perguntar antes de agir, mesmo que a ação fosse a guerra, o filósofo não se defendeu. O povo de Atenas saberia decidir. Um só não devia se impor a todos, sob o pretexto de ser um sábio. Pois o povo, que reúne todas as competências, inclusive as da douta ignorância, sempre, no fim, saberia melhor. O povo o condenou à morte. E Sócrates o louvou como sábio. Sábio ele, que louvou. Sábio o povo, que decidiu. Sócrates não foi assassinado por um déspota. Foi julgado pelo seu povo. Perdeu. E ganhou. Ganhamos a filosofia, coisa excelente enquanto não se desvia da vida.
Também a democracia pode se afastar da vida. A tentação de uma força maior do que a verdade do povo é, tem sido, constante. O poder é tentador por si só. Por isso os déspotas falam da sua solidão. É porque se descolaram da companhia do povo. E ficaram com saudades da oligarquia, quando estavam mais em família, entre iguais, todos ilustrados e sabedores das “coisas da vida” que escapam aos vulgares. Não importa se para lidar com essas coisas precisavam abrir mão da verdade. A verdade podia ser empurrada para o colo dos filósofos, sair do território do poder. Todos perdem com isso: a verdade, o povo simples e a própria vida, que nesses casos se chama política. As “coisas da vida” são interesses, envolvem riquezas, sua conquista e manutenção, que nem sempre os do povo compreendem bem. A necessidade de impostos pesados, de salários moderados, como o povo entenderia esses sacrifícios, necessários por causa das “coisas da vida”?
O povo entendia. Só não concordava. E quando podia voltar à Ágora, quando o chamavam a falar, decidia segundo os seus interesses, os da maioria. E os oligarcas, controladores do poder, gritavam então: “Viram? Não decidiram levando em conta as ‘coisas da vida’! Decidiram pelos seus interesses!’” Os oligarcas, sabemos, são minoria.
Aos tropeços, vencendo as prisões e a morte, a democracia e a filosofia civilizaram o Ocidente. A Grécia merece até hoje a nossa gratidão. Merece todos os créditos. Todos, todos os créditos.