Usamos a palavra “fundamental” para dizer coisas boas. Uma obra fundamental. O domínio dos fundamentos de um jogo. As fundações de uma casa: os ventos sopram, desencadeiam-se os elementos, e a casa permanece de pé. É uma palavra que se usa para conferir a verdade. Mas o mesmo radical está em “fundamentalismo”. E aí é outra conversa. Não tem graça. “Fundamentalismo” é uma palavra do mal.
Vem há algum tempo associada à religião. Um fundamentalismo cristão lançou a cruzada Bush contra o “eixo do Mal”, Irã, Iraque e Coreia do Norte. E incluiu Líbia e Síria. Há também o inverso, o fundamentalismo islâmico, para o qual os Estados Unidos são o Grande Satã. Cobrindo tudo, o Terror. Tão poderosas são as ações praticadas por esses fundamentalismos que levaram bons estudiosos a falarem em choque de civilizações. O cristianismo contra o Islã. O Islã contra o Ocidente cristão e os judeus. E os muçulmanos acabaram demonizados, os árabes, temidos até por suas características físicas. E os antissemitismos exacerbados por conta do fundamentalismo israelense, que os palestinos conhecem na carne e alimenta de terror — recíproco — a zona mais instável do mundo. Porque, naturalmente, há também um fundamentalismo palestino. As religiões postas como ideologias bélicas e armas de guerra. Pobres religiões, amorosas e pacíficas. Tão fáceis de manipular. Quando elas são parte do mal do mundo, é só olhar com alguma atenção: há um fundamentalismo em ação violenta na base dos seus fundamentos verdadeiros. Mas a sutileza dos fundamentalistas é justamente dispensar a procura de fundamentos. Eles se bastam nas suas ações guerreiras. Têm a si mesmos como única referência. Não precisam de mediação. Por isso são tão tragicamente eficazes. Não quero bater numa nota só nessas crônicas, mas digo que os fundamentalismos, uma das faces do Mal na nossa civilização planetarizada, são consanguíneos das sociedades pós-modernas.
Não é implicância. Olhemos bem. Nas origens do Ocidente, lá pelo século I d.C., a fonte grega do Ser, da razão e da filosofia se cruzou inesperadamente com as águas judaicas de Deus, da fé e da religião. E a cultura cristã resultante fundou um novo mundo sobre a pedra fundamental de razão e fé: não podíamos tocar a carne verdadeira do mundo sem recorrermos às mediações da razão e, em simultâneo, às imediatas intuições da fé. Em torno delas gravitaram filósofos e teólogos, filósofos e cientistas, fundaram-se as universidades, levantaram-se as catedrais, inventou-se a separação entre o espaço público da razão e a esfera privada da fé. Com lupa de detetive histórico podem-se rastrear os sucessivos rolamentos dessa pedra fundamental, e por eles contar a nossa história. Até o século XIX, quando a ciência, sozinha, tomou o trono da verdade. E a fé bateu nas cordas do ringue.
E aí passou-se o inimaginável: a ciência, soberana recente, encantou-se, no século XX, com a hipereficácia das novas tecnologias de ponta do conhecimento e da informação e fez seu salto mortal: piruetou no ar, caiu de pé no campo tecnológico, e, para dar conta dessa proeza, jogou fora o lastro da verdade. Essa, com a sua natureza absoluta, não combinava com o pragmatismo dos sistemas tecnológicos, aos quais só interessam resultados. A verdade girou no ar, carregando consigo a pergunta pelos fundamentos da vida e do mundo, e caiu nas mãos dos que nunca se interessaram pela razão e suas mediações ponderadas. Essas são as mãos dos fundamentalistas religiosos. Desde aqueles que explodem crianças até os que ocupam horas de televisão com a banalidade dos milagres pagos adiantado.
Nessa conjuntura, o Oriente, que não estivera no jogo de razão e fé (exceto pelos grandes filósofos árabes e judeus da Idade Média), pôde entrar com o que conhecia bem, as teocracias, os Estados religiosos, os jihadismos de todo tipo, na contramão do Ocidente laicizado. E o tempo fechou. Declaração Universal dos Direitos do Homem, assim em maiúsculas, e a xaria e as fatwas convivendo no mesmo mundo tornado convulsivamente um só. Quebrado por guerras de religião, atentados e violências em nome de Deus. Pobre Deus. Com que olhos espantados deve olhar para a sua Humanidade enlouquecida.
Fundamentos, repito, são coisas boas. Fundamentalismos são coisas más. Assim mesmo. Luz e sombra. E os pacíficos no meio. Temos como evitar esse armagedon. Olhar de frente. Não justificar, não relativizar, não tergiversar. Não conversar com o Terror. Sermos virtuosamente maniqueístas. Cara a cara. E não piscar. Para isso talvez bastem olhos doces, dos que ganham facilmente a umidade da ternura. Podemos treinar desde já. Um dia esses olhos macios, postos no aço duro de cristãos, muçulmanos, judeus e palestinos que perderam o caminho da visão de Deus, podem quebrar o gelo e reflorir a terra.