Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

A moça, o gás e a bomba

O futuro, tempo totalmente virtual, pulou sobre o presente e determinou aí os seus efeitos (13/06/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

A moça americana tinha 19 anos e fez duas mastectomias. Não tinha câncer. Não um real. Tinha era medo. Dali a muito tempo podia desenvolver um. Um tumor virtual, futuro e incerto, foi o que determinou uma tal brutalidade. O futuro, tempo totalmente virtual, pulou sobre o presente e determinou aí os seus efeitos. Ela, tudo indica, não vai ter câncer, não de mama. Seios reais, é certo, não os terá nunca mais. Fez um cálculo. Por enquanto, perdeu. O futuro, quando for um tempo real, dirá se também ganhou. Se a conta não deu resto.

A cúpula nazista no final da guerra tinha um desafio. Precisava fazer um esforço de contenção de despesas desde que Stálin declarara a guerra e abrira uma frente oriental. Ficou então muito caro manter vivos os judeus, ciganos, homossexuais, católicos em condições de trabalhos forçados, corpos destruídos, morte rondando como abutres em longo jejum. Os nazistas deram a essa situação de desequilíbrio matemático entre receita e despesa o nome igualmente matemático de problema. “O problema judeu”. E encontraram uma solução — a “solução final” — para fechar a conta. Uma barata cápsula de gás capaz de matar, de uma vez, centenas de pessoas sem gastar uma só bala, tão preciosa no front russo. Problema quase de almoxarifado. Existe a ata da reunião em que essa decisão foi tomada. Conta feita, resultado sem resto. Houve, graças a Deus, o resto mais poderoso, a memória dos que escaparam e resgataram para nós essa história de pavor extremo. Hoje a conhecemos. A conta, afinal, não fechou. E foram seis milhões de mortos.

A decisão de lançar a Bomba sobre Hiroshima e Nagasaki teve por trás das sofisticadas física e engenharia uma equação desumanamente simples. Os japoneses continuavam a guerra no Pacífico, depois da rendição dos europeus. A guerra, desnecessária, era onerosa para os Aliados. Em dinheiro e vidas. Então: se houver guerra ainda por muito tempo, quantos de nós e quantos deles? Muitos. Precipitado o fim da guerra pelo uso de uma monstruosidade bélica, quantos de nós e quantos deles? Pouquíssimos Aliados. Os japoneses, todos. Civis. A morte deles é que encerraria a guerra. Conta feita, ato praticado, rendição do imperador. Sem resto. Resto, houve, mas não foi na guerra. Os Estados Unidos se tornaram a nação mais poderosa do mundo e, como todos os impérios, passaram a ser invejados e odiados. A inveja e o ódio são violentos. A violência contra os vencedores foi um dos restos da guerra vencida. A conta, afinal, não foi perfeita.

É pela imperfeição das contas que se introduz luz por baixo da porta, a pequena esperança. Porque depois do gás e do átomo enlouquecido o mundo ficou outro. A verdade deixou de ser relevante. Valores, morais, direitos — obstáculos ao progresso. O futuro passou a valer mais do que o presente e seu passado. Um futuro sonhado, desejado, caminhado desde já pelos pés do presente? Não, esse, o dos projetos e utopias, morreu com os judeus e os japoneses, a bomba e o gás. Já estava morto quando a moça arrancou seus seios. Os senhores da Terra não sonham: calculam. Seu futuro são cálculos e apostas. E cálculos são neutros, servem para tudo, indiferentemente. Sua eficácia tomou o lugar da ética da verdade. E da compaixão. Mas a conta sempre deixa resto. É dele que se fazem nossas vidas. E a resistência que elas possam, saibam e queiram opor à barbárie que calcula.

Os senhores da Terra estão em toda parte. Erro grande é localizá-los num povo, num governo, num hemisfério. Sim, são mais visíveis em certas partes do planeta. Mas vivem em todos os lugares a que cheguem o império do dinheiro e a potência do terror, ambos sem sonhos. Cálculos, frieza movem drones e decepam cabeças. E dão-se em espetáculo. Invadem a casa dos pacíficos, riem postumamente das vítimas. Os que não lançam artefatos bélicos, no máximo balões que queimam árvores, nem degolam mais do que eventuais galinhas ficam espantados. Abismados. E podemos escolher o espanto e a vertigem como luzes por baixo da porta. O que o poder e o terror procuram é a sua naturalização. Querem que aceitemos como necessários um ou outro, segundo o lado da cerca em que estejamos, e não nos espantemos nem nos abismemos com o que vem desse lado, o nosso. Seria um erro catastrófico. Pois os pacíficos e sonhadores não estão em um lado. Estão no meio. Os drones voam sobre as nossas cabeças, as facas zunem perto dos nossos ouvidos. Espantarmo-nos e encararmos o abismo é necessário. Esse é o resto da conta. A esperança se alimenta desses restos. São eles a casa da verdade e da compaixão. Habitemo-la. Ainda é possível.

Tenho enorme pena da moça americana, que não sabia que sua decisão mutiladora já vivia nesse mundo do cálculo frio, e pensou estar fazendo o melhor. Deus queira. É a única inocente nessa história toda.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)