Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

‘Ninguém nos representa!’

O grito de raiva, angústia e esperança ecoou nas manifestações de 2013 (16/05/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

Esse grito de raiva, angústia e esperança ecoou nas manifestações de 2013 e tem sido tema na discussão política. Sobretudo na sua dimensão de orgulho, raiva e angústia irritada. O que se diz nele é que os partidos e o Estado, espelhos quebrados, já não refletem a nação. Ela não encontra lá mais seu corpo, seu desejo. E reage. Há nesse grito uma dimensão objetiva e duas subjetivas. A primeira é óbvia: o Estado e os partidos não nos representam mesmo. Estão atolados numa escandalosa crise de representação. As outras duas já não são evidentes.

Os partidos se “esquizofrenizaram” diante da nação. Como a palavra diz, partido é parte, que, composta com outras partes, deveria mostrar ao povo sua imagem integral. Mas são 32! Não podem refletir. São peças do mundo virtual da política. Compõem juntos um simulacro de poder, de uma representação que já não existe. Não há de ser assim para sempre! Os alquimistas de amarguras dizem: para sempre. Mas há partidos, e parcelas do Estado, em que ainda se encontram a lembrança e o desejo de representar. Poucos e pequenos, os partidos. Mas neles mora a esperança. Como o grão de mostarda do evangelho: a menor das sementes, mas dela nasce o reino de Deus. Esperança, então. Pequena. Mas há.

A dimensão raivosa dos que gritam, no entanto, escamoteia a esperança. Dizem só: vocês não nos representam! E se enrolam na bandeira, pintam a cara para a guerra, cantam o hino. Têm razão. Vocês — o que for, partidos, governos, sindicatos, tudo de mistura — não têm mais a potência requerida para representar. Os raivosos agitam cartazes e faixas, exigindo coisas. Algumas comoventes de tão reveladoras do mais completo abandono. Outras que parecem todo um programa para o poder. São excelentes imagens. Pautam a mídia e são usadas por ela. É aí que a guerra se passa: entre o real das ruas, o virtual das redes e a imagem dos jornais. Versões de versões. A verdade naufraga nessas versões, que, cada uma delas, pretende ser a mais pura expressão do verdadeiro.

A dimensão angustiada do protesto foi a que as instituições não entenderam. Diz mais ou menos assim: vocês não nos representam, mas nós queremos e precisamos ser representados. Olhem para nós! — Ninguém olha. É difícil ao poder perceber esse pedido de socorro. Uma nação está órfã de autoimagem, de reconhecimento: não se vê mais no espelho, não conhece seu rosto atual; e não é acarinhada, levada a caminhar com amor. Os que a veem são mesmo poucos, e não têm tamanho para incorporar nossa agitação e espera. Por baixo dessa angústia gritada, do desespero, se oculta o mais terrível: bem pode ser que esse povo, nós, nunca tenhamos verdadeiramente sido uma nação. Aqui houve Estado antes de existir um povo do qual ele fosse a legítima superestrutura. Faltou o ato constituinte. Não se deu a passagem de um povo no seu território para a concentrada representação dele num lugar político verdadeiro. Constituições, tivemos muitas. Ato constituinte, talvez nenhum. Tudo sempre se passou nas altas esferas do poder já estabelecido. Nada subiu para lá direto do corpo doído e esperançoso da nação. Talvez seja tremendo assim: a nação brasileira ainda não se encontra, verdadeiramente, em parte alguma. A ausência de representação é, então, um fato e um terror. Porque o mundo globalizado se fecha, as Nações vão sendo dispensadas, e os Estados com elas. Para nós, então, há uma urgência aflita e mortal.

A dimensão da esperança não frequentou as primeiras páginas. “Um outro mundo é possível” já quase não se ouve mais. Mas é. Um que tenha por força e virtude a fraternidade. Já não serão apenas a lei, que institui a liberdade, nem o Estado, que declara a igualdade, que nos representarão. Às suas margens ainda se mantêm servidões, e eles não atentam para as benéficas diferenças que nos mobilizam. A fraternidade, pela qual não se fez uma revolução, expressa o amor e a luta dos irmãos, que conquistam sua igualdade na tensão das diferenças, na agitação amorosa e guerreira da vida. A esses, ninguém representa sem pedir autorização. São eles que vão inventar a representação que desejam, de que precisamos todos, para sermos “maiusculamente” Nação. A representação é necessária. Não podemos estar todos o tempo todo em toda parte. Ela é metade da democracia. A outra é a pressão. É essa que vai para a rua, sai das redes, volta à imagem, se consome. Que não desanime. A representação provirá desse ato constituinte simbólico. Precisamos aprendê-lo. Então poderemos dizer: nós, o povo, estamos presentes, e nos delegamos a quem esteja presente conosco. Somos diferentes, precisamos da multiplicidade dos partidos e agências do Estado. Mas só se forem verdadeiros. Se não, jogamo-los fora e acendemos as fogueiras da sua consumação.

Temos então a raiva, a angústia e a esperança. Maior, no entanto, seja a esperança.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)