Vivemos um grande momento da História. Uma mudança de paradigma. As regras e valores que nos fizeram pensar, dizer e fazer durante mais de 20 séculos estão em agitada flutuação diante da emergência do paradigma “pós-moderno” que é de uma contundência mortal: vai logo declarando a morte do real, da verdade, do fundamento das coisas, de Deus. É violento. Não precisa provar nada.
Todas as construções filosóficas que desde Platão e Aristóteles foram necessárias para entendermos o sentido do que pensamos e fazemos, dizemos e somos, para vermos alguns palmos adiante do nariz, tornaram-se desnecessárias, nostálgicas. É o que nos dizem. Vivemos mais de 20 séculos encantados com a procura do Sentido: da vida e da morte, do poder, do amor, da beleza, de Deus. Hoje — dizem-nos! — essa busca perdeu o sentido. Já não é preciso olhar adiante do nariz. Tudo está perto, ao alcance da mão, é só pegar e usar. Arrogante, não? Mas é que esse modo de pensar não precisa da legitimação de uma dimensão de transcendência. Ele é todo colado no mundo. É a pele discursiva da globalização.
Diante dele adotam-se duas atitudes perigosas. A da adesão pressurosa à sedução dessa cultura toda baseada na eficácia das novíssimas tecnologias de informação, de engenharia da vida e dos corpos, de simulações da realidade, dos jogos — aqueles com que se brinca e aqueles com que se mata. E a outra, a do “então não brinco mais”. É ressentida e reativa, tem a lógica do avestruz: se não olharmos para o “pavoroso mundo novo” ele deixa de existir para nós. E podemos voltar a cuidar das coisas da vida e da morte, do amor e de Deus. Cômodo, parece. Não é. É uma atitude de suicida que se esqueceu de deixar bilhete. Esqueceu-se até de morrer, mas não vive mais. Não de verdade. Porque o que há, e isso é o excitante, é que nós somos uma coisa e outra. Somos híbridos e contraditórios. Amamos o real e o virtual (é como em geral se chama), sofremos quando precisamos deles e eles não estão aí. Parece uma grande contradição, ou indecisão reprovável. Não importa. Nas nossas vidas comuns, que é o mais precioso e verdadeiro que temos, somos as duas coisas. Seduzidos pelas altas tecnologias produtoras de mundos virtuais e enamorados do velho e bom real em cujo barro gostamos de enfiar os pés. Isso é, segundo as melhores lógicas, um paradoxo, porque ambas se excluem. Segundo as nossas vidas comuns, não. Nós sabemos, sem precisarmos pensar demais nisso, que se escolhermos uma das nossas metades em detrimento da outra ficamos automaticamente hemiplégicos. Só estaremos decidindo qual o lado que preferimos deixar morrer. E depois carregar esse peso morto, cambados de banda pelo esforço, pelo resto da vida. Não tem a menor graça.
No entanto, a escolha mais comum é a da adesão automática ao mundo virtual, simulado. É como dizer: “é assim que as coisas se passam, esse é o estado do mundo, nada a fazer”. É aí que se declara o fim da História. Tudo se equilibrou, dizem, desde que não há mais dois grandes sistemas em contraposição estratégica, e o socialismo já não é opção para o mundo e a vida. É nessa que os quatro bilhões de excluídos, essa “África de sofrimento” (que se espalha pela mundo inteiro), além de postos fora porque não consomem, ficam também paralisados no tempo. Porque não há mais futuro que não seja a repetição do presente. Não há mais — que coisa terrível de se dizer aos pobres do mundo! — esperança. Estão congelados como os mamutes.
Essa é a conjuntura da guerra que precisamos ter a coragem de travar. Uma que não tem a lógica da destruição do inimigo — o “inimigo” somos também nós —, mas trabalha para o empate. Nem aceitar a abdicação de parte da nossa vitalidade por adesão leviana ou por negação teimosa, nem fechar os olhos para as contradições do nosso tempo. Não admitir que estamos irremediavelmente a caminho do fim — seja da esperança, da graça, da vida, do amor. Não estamos. Nossas vidas comuns nos dizem que não. Quem diz que sim são conversas de acadêmicos, filósofos anêmicos de paixão. Não somos isso.
Num mundo desertificado de transcendência pela banalidade do consumo obrigatório vale a pena lembrar a palavra profética de Nietzsche: “O deserto cresce; ai daquele que oculta desertos!” E também: “é preciso ter ainda um caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela que dança.” Enquanto quisermos não renunciar à benéfica tensão das nossas vidas, não quebrarmos sob o império da eficácia e do consumo, teremos um caos dentro de nós. E debaixo da nossa estrela que dança poderemos pôr a mão sobre a pele rugosa, seca, doída da África de sofrimento e lhe transferir a respiração do amor. Cada um, cada uma saberá como fazer. Renunciar a isso é abismar-se na tristeza sem remédio. Quem há de desejar essa derrota melancólica da vida?