Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Globalização — e nós com isso?

O mundo tem sete bilhões de pessoas, mas quatro bilhões estão fora dele (02/05/2015)

* Leia no site dO Globo ou abaixo.

O mundo é habitado por sete bilhões de pessoas. Mas quatro bilhões de humanos estão fora desse mundo. E, parece, não entrarão, se mudanças radicais não se produzirem. Os números não são coisa dita sem base, são informação do Banco Mundial, insuspeito de aparelhamentos e esquerdismos: quatro bilhões de pessoas vivem com entre US$ 1 e US$ 2 por dia. Entre R$ 90 e R$ 180 no bolso por mês. Estão abaixo das condições de consumo que permitam reproduzir de um dia para o outro, da mão para a boca, condições mínimas de vida animal. Da vida humana e sua dignidade nem se fala. Quatro bilhões são quatro Áfricas! Quatro Áfricas de sofrimento. É nelas que penso quando vou escrevendo essa primeira coluna aqui na página 2. Podia ter escolhido um assunto mais ameno, claro.

— É sábado. Dá um tempo.

— Mas elas estão olhando para cá. São olhos mudos. Dá para fingir que não vi?

Esse mundo assim crivado pela dor corresponde ao estágio mais refinado do capitalismo: a riqueza se imaterializou, as relações econômicas se financeirizaram, as interações entre as pessoas e entre elas e o mundo entraram na dimensão do consumo generalizado. Não só de bens e serviços. Agora comemos valores, corpos, subjetividades, pessoas. Está tudo posto como mercadoria. O mundo se fez um grande mercado. É a isso que se chama globalização.

Não é uma novidade absoluta. A Humanidade algumas vezes já se viu unificada em grandes esquemas de poder, saber e controle da vida. O império de Alexandre, o dos romanos, a Cristandade, o Império britânico foram formas de globalização. Pela guerra, o direito, a fé, o comércio. Os Estados Unidos e a Europa estão construindo a do consumo. E essa, a nossa, afeta diretamente as nossas vidas comuns, não é só a globalização da vez. Não é uma banalidade. Sem retórica, é coisa de vida e morte. Quatro bilhões de pessoas...!

Também a exclusão não é novidade. Houve os escravos na base da civilização greco-romana. Houve os servos da gleba na época do feudalismo. E a legião dos desempregados no início do capitalismo industrial. Mas os escravos podiam ser libertos. Os servos da gleba, paupérrimos, sem dúvida, eram donos do arado, às vezes do boi. E os desempregados do capitalismo do século XIX eram chamados a ocupar os postos de trabalho dos seus companheiros demitidos por reivindicarem aumentos salariais e melhores condições e trabalho. Hoje, não. A exclusão parece ser estrutural, tem jeito de irreversível. Se o passaporte para o mundo é a capacidade de consumir, quem só consome — porque é de graça — o ar que respira perdeu a viagem. O mundo globalizado não é porto. Quem está em terra come. Quem está no mar naufraga. Quatro bilhões.

Essas pessoas têm rosto, claro. Alguns de nós se lembram das fotos da fome em Biafra. Crianças-só-pele, barrigões de ar, sobrevoadas por moscas, pequenos corpos ainda vivos porque a morte andava ocupada em outra parte. Fotos, estetização do sofrimento. Depois veio a grande fome da Etiópia. Já apareceu na televisão. E os grandes astros pop da Inglaterra compuseram uma linda canção sobre aquele horror. O show em que ela foi apresentada ainda me arrepia retroativamente. Nós somos muito bons de emoção. E aí foi Ruanda. Oitocentas mil pessoas massacradas em três meses. O terror foi tamanho que dessa vez o Ocidente se mobilizou: as empresas belgas fugiram, os europeus foram retirados sob a proteção das forças de paz da ONU, e as forças de paz da ONU caíram fora. Alguns ótimos filmes foram feitos depois, “baseados em fatos reais”. Filmes são boas coisas, nesses casos. Promovem indignação. Mas às vezes facilitam uma indignação sentada. Todas essas estetizações produzem distância. Talvez a distância entre “nós” e “eles” nunca tenha sido tão obscenamente grande. Dispomos de tecnologias de visibilidade que nos encantam com suas montanhas de imagens e tornam o mundo, o grande mundo lá fora, opaco para nós.

Quatro bilhões... Desculpem. Honestamente me entristece imaginar pessoas levantando-se das camas dos seus merecidos descansos nesse sábado de manhã, indo à porta pegar o jornal, abrindo o Segundo Caderno à procura de um refresco depois de uma semana de cansaços e encontrando, logo na virada da segunda página, a avalanche de todas as dores do mundo. O problema é que essas dores existem assombrosamente, mas não chegam perto das nossas portas. Tive de inventar essa forma de contrabando para fazê-las entrar. Só um pouquinho. Depois vamos todos tomar café, e a vida vai retomar seu ritmo. Mas se uma pequena sombra ficar, talvez o ritmo acabe um dia mudando, e a vida vá devagar ficando mais generosa. E aí terá valido a pena.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)