Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

A carta da velha na chuva

* Artigo de 31/10/2015 publicado no Caderno de Cultura dO Globo (link original não disponível)

Hoje estava decidido a escrever sobre poesia. Há semanas que venho martelando democracia, política, questionamentos. Estou pesado. O mundo anda pesando em mim. Pensei: Será que não posso mudar de tom? Para a poesia? Aí ocorreu-me um poema de Manuel Bandeira, que diz que ele sabe que a poesia também pode ser orvalho, mas essa ele deixa para as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade. Estava triste, o poeta. Escandalizado talvez com o mundo. Então, para a poesia fico devendo. Virá, tenho certeza. Mas ontem vi a longuíssima fila dos deslocados pela vida, e meu coração pesou toneladas de tristeza. Perdoem-me a descortesia, mas preciso passar uma parte desse peso para vocês.

Era gente até onde a tela cortava a realidade. Muitos milhares. Caminhando devagar como soldados do desespero, arrastando bolas de desencanto nos pés. Não estavam em peregrinação. Não andavam à toa. Seu norte era a Europa. Quem chegasse lá encontraria o ouro. Aquela tristíssima coluna de gente em fuga se parecia demais com imagens passadas de outros aglomerados de pessoas desvestidas de humanidade, carregadas só por um fiozinho de esperança. Na beira da ruptura, da definitiva escuridão, do silêncio.

Eu sei. Elas não fugiriam se as condições em seus países não fossem de guerra, de perseguições étnicas e religiosas, se houvesse só um pouquinho de trabalho e pão. As estruturas desses países precisam mudar, ou se estará enxugando gelo. Depois dos sessenta mil desses dias, mais os cem mil que a União Europeia acabou de autorizar, outras centenas de milhares de ‘migrantes’ continuarão a se lançar sobre a Europa. Eu sei. Mas alguém duvida de que as necessárias transformações, que suspendam as guerras, tornem fraternas as relações entre povos e credos, e façam brotar o pão e aparecer o trabalho demorarão eternidades inteiras para ocorrer? E que os retirantes, que mal estão vivos agora, já não gozarão dessa paz nem matarão sua fome? Deixam-se morrer os de agora em troca de mudanças futuras nos seus países, que tornem as ‘migrações’ desnecessárias? Foi para isso que a Hungria levantou seu pavoroso muro de infâmia? Que os países balcânicos fazem de tudo para que essa massa de pessoas não chegue ao seu solo? E, quando chega, a isolam atrás de grades, abrem um acampamento miserável e atiram pão por cima da cerca? Todos pulam e correm para pegar algum. Quem não tem a agilidade do pulo não come. Ontem havia uma velhinha assim.

Bem velhinha. Imagino seus olhos cansados de desesperança, roídos pela falta de sono. Mas não ontem. Encarando firmemente a câmara, olhou para nós e gritou acusações terríveis. Sobre o abandono inominável. Atrás dela o acampamento era um charco onde as pessoas chapinhavam, por causa da chuva. As barracas, rasgadas pelo vento, pareciam bandeiras sem causa nem pátria, destroços de coisas entre destroços de gente. Ela apontava e falava. Não eram aqueles gritos desesperados e agudos de quem chora um luto. Era uma condenação. Havia raiva na sua voz e nos seus olhos. Eu vi. Não entendi o que disse, não pelos ouvidos. Mas sei exatamente o que foi. Ela bate agora com força nas teclas em que tento contar seu fiapo de história, só o que vi ontem, aquele dedo que apontava, a voz que acusava com olhos brilhantes de ira e lágrima.  Ela quer mais. Quer escrever uma carta à consciência ocidental. Exigir que não atirem mais pão pelas grades, como já nem se faz com os bichos no zoológico. Garantir que ela, e os como ela, não são um espetáculo para a hora do nosso jornal. Afirmar que entre os toques no botão que liga nossas televisões para vê-los, com vinte e quatro horas de intervalo, muitos ali terão morrido. Sem dignidade. Cogitar se amanhã ainda estará lá para nos encarar com seus olhos raivosos. Ela quer uma carta que não sei escrever. Está lá, no lodaçal, com fome. E eu aqui no computador, e daqui a pouco vou tomar o meu café da manhã. Não quero mudar de lugar com ela. Mas queria pegá-la no colo, essa velhinha, e dizer umas palavras de carinho, uma canção de ninar. Palavras gaguejadas, fiapos de voz. Não porque eu não fale a sua língua. Pelo contrário, entendemo-nos bem. Gaguejadas de vergonha. E de culpa: não consegui escrever sua carta. Ficaríamos os dois abraçados e chorando de impotência. Não sei se faria bem ou mal ao seu coração, o meu carinho deslocado. No meu pesa o que balanças não avaliam. Ela só quer chegar à Alemanha! Por que não a deixam ir? Porque vai criar problemas. Mas o problema já existe! É a velhinha na chuva. Ela é que não pode resolvê-lo. A Europa pode. Com desconfortos? Claro. Mas pode.

Só sei que preciso que a velhinha na chuva desapareça um pouco de dentro das minhas retinas. Tenho algumas coisas amorosas e alegres para fazer hoje. Mas ela está lá. Aqui. Ela não deixa.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)